O conto de fadas da liberdade
«Aquilo que Ernst Jünger pensa nos pensamentos de domínio e figura do trabalhador, e aquilo que vê à luz deste pensamento, é o domínio universal da vontade de poder dentro da história vista planetariamente. Nesta realidade efectiva está hoje tudo, chame-se comunismo ou fascismo ou democracia universal».
Martin Heidegger (1945) [Das Rektorat 1933/34 – Tatsachen und Gedanken, publicado com Die Selbstbehauptung der deutschen Universität, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1990, pp. 24-25]
Habituamo-nos sempre com demasiada pressa a erguer barreiras, estabelecer limites, dispor balizas entre fenómenos que acabam por se manifestar não como distintos na sua essência, mas como várias configurações do mesmo. Um tal hábito não é humanamente evitável. Afinal, é ele que nos permite a consciência indispensável para agir, possibilitando-nos habitar o nosso tempo com o entusiasmo de quem vive uma nova era historicamente decisiva. Contudo, se não é desejável eliminar a possibilidade do entusiasmo, condenando-nos à inacção por um excesso de inteligência, também não é admissível comprá-lo, pagando por ele o preço da ingenuidade. É este preço que todos aqueles que hoje fazem da política uma profissão, assim como a “intelectualidade” que os sustenta, não podem deixar de pagar como um tributo. Não há hoje político profissional que não se alimente daquilo a que se poderia chamar a narrativa histórica do liberalismo político. Para eles, a história do homem moderno consiste num percurso linear, acidentado mas progressivo, pelo qual este se conquista como livre e senhor de si. Foram primeiro as guerras civis europeias entre as várias confissões cristãs, que terminam com o reconhecimento da liberdade de cada homem na eleição do seu modo íntimo e interior de adorar a Deus; e, no seu seguimento, com o reconhecimento da liberdade de pensamento, de consciência e de expressão. São depois as revoluções americana e francesa, nas quais os homens, reunidos sob a forma do povo, ousam afirmar, sem a mediação de príncipes ou representantes, a sua identidade com o soberano. É, finalmente, o século XX, o século de todos os perigos, em que a chamada “tradição da liberdade”, herdada dos séculos anteriores, ameaçada por todos os lados pelo obscurantismo, se instala definitivamente sob a derrota militar, económica e social da intolerância e da violência. A nossa vida política quotidiana ergue-se sobre este “conto de fadas” da liberdade. Nesta narrativa liberal da liberdade, entre o século XVIII, o século da revolução, e o século XX, o da ameaça e consagração definitiva do seu projecto, o século XIX, o século do parlamentarismo, situa-se como um simples século de transição. Contudo, este século, longe de se constituir como uma transição, é justamente o século que põe a nu o carácter forjado do “conto de fadas” liberal. Aqui, a liberdade surge já não apenas como uma liberdade de consciência (a liberdade de escolher a própria religião), já não apenas como uma liberdade política (a liberdade de escolher o próprio governo), mas como a liberdade de fazer e de contar a sua própria história. É esta nova liberdade que pelas grandes narrativas políticas é justamente anunciada – chame-se comunismo ou fascismo ou democracia universal. Depois desta nova conquista da liberdade humana, a história, e a própria narrativa liberal da liberdade, é ela própria um produto da liberdade. Não é então já a história que surge como uma história da liberdade, mas é a própria liberdade que faz a história, que a conta e a constrói, construindo e dominando, com ela, os próprios homens enquanto objectos expostos ao seu poder. E é esta mesma liberdade que hoje, como escreveu algures Peter Sloterdijk, não se basta com o domínio da história, mas passa à conquista da natureza, num processo de mobilização e domínio que expõe o homem – no seu corpo, na sua vontade, no seu pensamento, nos seus sentimentos, na sua “vida nua” (para usar a expressão de Agamben) – ao poder imanente de uma liberdade não humana, cujo percurso apenas obedece à lei mecânica do seu incessante crescimento. Diante da emergência do homem como um Golem, como uma criatura artificial da própria liberdade, a visão liberal da história, que vê sempre, em geral, a abertura de uma “nova era” da liberdade, surgindo de uma confrontação com as várias configurações possíveis da violência do poder, não é senão o imprescindível e piedoso contributo para uma anestesia consoladora.
Martin Heidegger (1945) [Das Rektorat 1933/34 – Tatsachen und Gedanken, publicado com Die Selbstbehauptung der deutschen Universität, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1990, pp. 24-25]
Habituamo-nos sempre com demasiada pressa a erguer barreiras, estabelecer limites, dispor balizas entre fenómenos que acabam por se manifestar não como distintos na sua essência, mas como várias configurações do mesmo. Um tal hábito não é humanamente evitável. Afinal, é ele que nos permite a consciência indispensável para agir, possibilitando-nos habitar o nosso tempo com o entusiasmo de quem vive uma nova era historicamente decisiva. Contudo, se não é desejável eliminar a possibilidade do entusiasmo, condenando-nos à inacção por um excesso de inteligência, também não é admissível comprá-lo, pagando por ele o preço da ingenuidade. É este preço que todos aqueles que hoje fazem da política uma profissão, assim como a “intelectualidade” que os sustenta, não podem deixar de pagar como um tributo. Não há hoje político profissional que não se alimente daquilo a que se poderia chamar a narrativa histórica do liberalismo político. Para eles, a história do homem moderno consiste num percurso linear, acidentado mas progressivo, pelo qual este se conquista como livre e senhor de si. Foram primeiro as guerras civis europeias entre as várias confissões cristãs, que terminam com o reconhecimento da liberdade de cada homem na eleição do seu modo íntimo e interior de adorar a Deus; e, no seu seguimento, com o reconhecimento da liberdade de pensamento, de consciência e de expressão. São depois as revoluções americana e francesa, nas quais os homens, reunidos sob a forma do povo, ousam afirmar, sem a mediação de príncipes ou representantes, a sua identidade com o soberano. É, finalmente, o século XX, o século de todos os perigos, em que a chamada “tradição da liberdade”, herdada dos séculos anteriores, ameaçada por todos os lados pelo obscurantismo, se instala definitivamente sob a derrota militar, económica e social da intolerância e da violência. A nossa vida política quotidiana ergue-se sobre este “conto de fadas” da liberdade. Nesta narrativa liberal da liberdade, entre o século XVIII, o século da revolução, e o século XX, o da ameaça e consagração definitiva do seu projecto, o século XIX, o século do parlamentarismo, situa-se como um simples século de transição. Contudo, este século, longe de se constituir como uma transição, é justamente o século que põe a nu o carácter forjado do “conto de fadas” liberal. Aqui, a liberdade surge já não apenas como uma liberdade de consciência (a liberdade de escolher a própria religião), já não apenas como uma liberdade política (a liberdade de escolher o próprio governo), mas como a liberdade de fazer e de contar a sua própria história. É esta nova liberdade que pelas grandes narrativas políticas é justamente anunciada – chame-se comunismo ou fascismo ou democracia universal. Depois desta nova conquista da liberdade humana, a história, e a própria narrativa liberal da liberdade, é ela própria um produto da liberdade. Não é então já a história que surge como uma história da liberdade, mas é a própria liberdade que faz a história, que a conta e a constrói, construindo e dominando, com ela, os próprios homens enquanto objectos expostos ao seu poder. E é esta mesma liberdade que hoje, como escreveu algures Peter Sloterdijk, não se basta com o domínio da história, mas passa à conquista da natureza, num processo de mobilização e domínio que expõe o homem – no seu corpo, na sua vontade, no seu pensamento, nos seus sentimentos, na sua “vida nua” (para usar a expressão de Agamben) – ao poder imanente de uma liberdade não humana, cujo percurso apenas obedece à lei mecânica do seu incessante crescimento. Diante da emergência do homem como um Golem, como uma criatura artificial da própria liberdade, a visão liberal da história, que vê sempre, em geral, a abertura de uma “nova era” da liberdade, surgindo de uma confrontação com as várias configurações possíveis da violência do poder, não é senão o imprescindível e piedoso contributo para uma anestesia consoladora.
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