Caminhos Errantes

terça-feira, dezembro 13, 2005

A sociedade total e o despojamento do futuro

O fim do Estado - que se torna visível fenomenicamente a partir da sua ratio cognoscendi: a animalização do homem - não precisa de coincidir, para a sua vigência histórica, com a introdução do caos, a perturbação da paz ou a irrupção da pura violência. No século XX, o fim do Estado foi anunciado já pelo fim da cisão entre Estado e sociedade, isto é, pela transformação do Estado em mera "sociedade politicamente organizada". Uma tal indistinção sufucou o Estado, retirou-lhe a carne e reduziu-o a uma espécie de crustáceo cujo exoesqueleto se tornou disponível para ser preenchido segundo o arbítrio de quem tem poder para o fazer. A ocupação do Estado pela sociedade tornou o cadáver do Estado num "Estado total", num Estado cuja extensão cobre quantitativamente a totalidade da sociedade (para o caso, tornou-se indiferente se se trata de um "Estado total de partidos" ou de um "Estado total de partido único"). E esta ocupação teve, na sociedade, uma consequência típica: aquilo a que se poderia chamar o despojamento do passado. Com a totalidade do Estado, foi possível a imposição social de uma visão do mundo (de uma Weltanschauung ou de uma comprehensive doctrine) socialmente unificada: a história tornou-se interpretada, dirigida e cuidada pelo grupo, partido ou movimento social que ocupa o Estado. Mas hoje já não é possível falar - a não ser anacronicamente - em totalidade do Estado. Vivemos hoje não propriamente o fim do Estado, mas também não experimentamos o fim desse mesmo fim; o que hoje aparece é o fim da visão do fim do Estado, o fim de um pensar apocalíptico em torno deste. E daí que, embora já não seja possível falar de "Estado total", a indistinção, a con-fusão entre sociedade e Estado não possa hoje vigorar mais fortemente. Dir-se-ia que é agora a sociedade que se torna "sociedade total". Tal quer dizer que já não se trata hoje de que um movimento social ou um partido totalitário ocupe o Estado e, com o recurso de uma propaganda explícita, imponha uma "visão do mundo" e despoje uma sociedade do seu passado. Hoje, o fim do Estado acontece não como uma ocupação do Estado por um partido, ou por um movimento social totalitário, mas como a sua total falta de autoridade diante da "sociedade total": como uma espécie de processo automático de liquidificação. Com esta liquidificação, e através da sua propaganda implícita, é já não o passado, mas o futuro e o advento de possibilidades que são furtados. O Estado total assenta assim no despojamento do passado. A sociedade total, no despojamento do futuro.