Caminhos Errantes

sábado, outubro 25, 2003

Uma introdução ao pensamento de Henrique Barrilaro Ruas

O pensamento de Henrique Barrilaro Ruas situa-se então entre duas tendências para pensar a política cuja contraposição marca, em larga medida, a história política do século XX. Por um lado, situa-se diante da tendência “liberal” para pensar o homem de um modo abstracto, e a política como o simples resultado de uma liberdade humana pensada abstractamente como carente de quaisquer vínculos. A partir de uma tal tendência, a sociedade política não pode ser concebida senão como uma mera associação voluntária, como um contrato que estabelece um mero mecanismo técnico de protecção, ao qual os homens sacrificam a sua liberdade inicial, na espontaneidade e naturalidade que caracteriza o seu início. É então diante de uma política liberal, que surge sobretudo na herança de Hobbes e que parte da representação abstracta de um homem constituído como uma liberdade sem vínculos nem laços imediatos, que Henrique Barrilaro Ruas não pode deixar de apontar a necessidade de pensar o homem concreto e, consequentemente, a impossibilidade de pensar o homem a partir da abstracção da sua natureza. Por outro lado, o pensamento de Henrique Barrilaro Ruas situa-se diante da tendência “colectivista” para pensar o homem como algo cuja natureza se esgota nos laços naturais que estabelece. Segundo esta tendência, encerrado nas suas relações naturais, o homem não é senão uma manifestação esporádica, ocasional e precária destas mesmas relações. E é diante desta redução do homem aos seus laços naturais, diante da assunção do homem individual como apenas um caso de um todo que o ultrapassa, seja esse todo uma família, um povo, uma nação, um partido, um Estado, uma comunidade de trabalho ou uma raça – assunção essa que talvez encontre o seu exemplo mais acabado no lema nacional-socialista: du bist nichts, dein Volk ist alles; tu não és nada, o teu povo é tudo –, que o pensamento personalista de Henrique Barrilaro Ruas não pode deixar de reivindicar para cada homem, na sua singularidade, uma dignidade e um valor irredutíveis.
Na perspectiva personalista de Henrique Barrilaro Ruas, e usando de uma expressão de inspiração kantiana, dir-se-ia então que a política sem a natureza é vazia; e que esta mesma política sem a transcendência é cega. Tanto o “liberalismo” como o “colectivismo” enfermam então de uma visão deficiente, porque demasiado simplificada, do núcleo fundamental das relações que caracterizam a natureza humana. Se o primeiro esquece a existência humana positiva e concreta, esquecendo as relações naturais que constituem o próprio homem, esquecendo a verdade simples de um homem de “carne e osso”, nascido numa família, cercado por um círculo de afectos e existindo numa comunidade de relações de proximidade, de vizinhança e de trabalho, o segundo perde a relação do homem com a transcendência, perdendo a relação de cada homem, na sua singularidade, com Deus e reduzindo-o a uma mera parte de um todo que o ultrapassa, a um mero exemplar substituível, a uma mera peça, cujo sentido se encontra apenas na existência de algo maior e a cujo estatuto ontológico não pode ser atribuída a dignidade que o conceito de pessoa encerra.
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Diante das tendências liberais e colectivistas que mobilizaram politicamente o século XX, a política deve servir, na perspectiva de Henrique Barrilaro Ruas, para mediar as relações naturais ou económicas, por um lado, e as relações com a transcendência, por outro. O político é então, por essência, uma função mediadora: ele situa-se como o ponto intermediário de uma hierarquia que encontra o religioso no seu topo, e que tem na sua base o económico. Poder-se-á então dizer que, na sua tarefa mediadora, a política é a dimensão mais profundamente humana. Como escreve Henrique Barrilaro Ruas: «O plano político é o plano entre todos humano, aquele que o homem melhor domina, melhor abrange, mais facilmente assalta, porque pode, ao considerá-lo objectivo, desdobrá-lo à altura dos seus olhos. Tudo o que é político é humano (nem tudo o que é económico; nem tudo o que é religioso)». Contudo, precisamente pela sua relação privilegiada com a humanidade do homem, fora da mediação, a política perde a complexidade da realidade humana. E, simplificando o homem, ela torna-se regida por uma mera ideia, por uma imagem simplificada do homem, forjada e despojada do objecto que lhe corresponde. Surge então um homem quimérico, inventado por aquilo a que se poderia chamar uma política autonomizada. E a política torna-se então numa ideia sem objecto, ou seja, numa simples ideia de uma ideia que, na falta do objecto que lhe corresponde, se propõe produzir, fabricar e modular, mesmo com a violência inevitável dessa actividade produtiva, o próprio homem de que precisa. Por outras palavras: carente de um acolhimento suficiente da complexidade da realidade humana, a política torna-se ideologia, procurando fazer o homem à sua medida; combatendo violentamente a própria natureza, como se assim, finalmente, pudesse produzir o homem tal como o projecta.