Caminhos Errantes

terça-feira, setembro 23, 2003

Para além da forja

Toda a vida política e, na verdade, toda a vida em comum assenta, por exigência da sua natureza intrínseca, em "lugares comuns". Não há vida em comum se não houver um lugar, um topos, onde todos se encontrem e descansem. No caso da nossa "vida política", os lugares comuns consolidaram-se e ganharam forma institucional no século XIX: o livre pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade de associação, a liberdade de discussão. Numa palavra: a liberdade de o homem contar a sua história (desde a história universal à história individual) como entende, construindo-a, representando-a, sustentando-a e defendendo-a diante dos outros. Pergunto-me, no entanto, se, apesar da forma institucional e das representações comuns da nossa vida política, a liberdade humana não estará hoje em confronto com uma dimensão mais profunda e mais densa que a própria história. Aquela que é talvez a última fronteira da liberdade liberal não consiste na capacidade de contar a própria história, mas na liberdade de dominar a própria natureza e, nessa medida, a própria vida. Como escreve Sloterdijk, sobre este destino liberal da modernidade: «Seria demasiado pouco dizermos que a Modernidade prometeu ser ela própria, doravante, a fazer a história humana. No seu núcleo ardente, ela não quer apenas fazer história, mas também Natureza» (Cf. Peter SLOTERDIJK, A mobilização infinita: para uma crítica da cinética política, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa, Relógio d’Água, 2002, p. 25).
Semelhante a uma enorme forja, para usar os termos de Ernst Jünger, o século XX consiste num tempo de passagem, numa Zwischenzeit entre a conquista da história e a conquista da natureza pelo homem moderno. A experiência política mais marcante do século XX, o nacional-socialismo alemão, consiste justamente num híbrido político, num cruzamento forçado ou, melhor dizendo, forjado que, nessa medida, surge como um teste às potências e às possibilidades da própria forja. Ele é assim uma “história” fora da história, um “tempo” fora do seu encadeamento em série, um espaço dionisíaco em que tudo parece possível, em que o possível e o real perdem o contorno que os limita.
Poder-se-ia então ver o significado essencial do nacional-socialismo neste cruzamento entre história e natureza. Por um lado, o nacional-socialismo faz a sua própria história, a história da superioridade racial ariana e da sua luta contra o judeu, através sobretudo de uma propaganda que determina puramente pela sua eficácia, sem a mínima referência à realidade efectiva, o que é ou não verdade. Por outro lado, essa narrativa histórica só é possível pela exposição do novo homem nacional-socialista, como uma matéria-prima, à acção inteiramente livre do poder de fazer essa mesma história. Assim, um tal poder já não faz apenas a história, mas constrói à sua imagem o novo homem, naquilo que pensa, quer e sente, ou seja, na sua própria vida. A exposição da vida dos alemães à propaganda radiofónica de Goebbels, a exposição da “vida indigna de ser vivida” a uma eutanásia pretensamente piedosa e a exposição da vida dos judeus à arbitrariedade do poder exercido nos campos de trabalho e de extermínio são os exemplos pelos quais o nacional-socialismo antecipou, ainda no coração do século XX, a expansão do poder da liberdade para a esfera da natureza ou da vida. Mas uma tal expansão exerce-se tão mais claramente quanto mais a liberdade liberal, abandonando a grande forja do século XX, se aproxima da assunção plena do seu projecto. Trata-se agora de fazer entrar na esfera de poder da liberdade humana aquilo a que Giorgio Agamben chamou a “vida nua”.
A formação do homem, nas suas opiniões, crenças, sentimentos e pensamentos mais íntimos, pela expansão dos mass media, a sua infantilização através da passagem para um paradigma espectacular da comunicação, é apenas um bom exemplo da exposição do homem enquanto “vida nua” ao poder paradoxal da liberdade. Mas muitos outros fenómenos contemporâneos se configuram como manifestações, mais ou menos discretas, desta nova liberdade de determinar a natureza: desde a “revolução genética” até ao body building.
Se o século XIX foi a expressão da conquista pelo homem da sua liberdade para moldar a história, o século XXI vislumbra-se como a era em que o homem moldará a própria natureza. A mobilização de milhões de homens pelas revoluções socialistas, ou pelas lutas e movimentos descolonizadores, tem agora a sua correspondência na mobilização do homem em função da determinação exclusiva e privada daquilo que ao seu corpo diz respeito. O corpo humano surge assim como uma espécie de última conquista da própria liberdade humana. Ele é assim já não o "templo de Deus", mas o ponto em que um homem inteiramente livre se torna numa obra de arte de si mesmo. E é neste sentido que, nas sociedades liberais tardias, a vida e o corpo constituem a única fonte essencial, e não meramente conjuntural, de mobilização política. A determinação do corpo e da vida, na sua geração, na sua fecundidade, na sua sexualidade ou até na sua própria morte, é assim o inevitável tema político daquilo a que se poderia chamar um "liberalismo político" tardio e plenamente consumado. As suas várias e mais díspares configurações – as mobilizações a favor ou contra o aborto ou a eutanásia, a paixão dos debates em torno da homossexualidade, por exemplo – são, no fundo, apenas expressões possíveis da única liberdade que hoje exclusivamente pode mobilizar.