Caminhos Errantes

quinta-feira, setembro 18, 2003

Pensar

Uma das mais gratuitas e belas brincadeiras de Heidegger com a língua alemã é a frase: Denken ist Danken; pensar é agradecer. Apesar da variação de apenas uma letra, não existe qualquer relação entre os dois verbos. Mas, a partir da mera semelhança sonora e gráfica, é toda uma meditação sobre a essência do pensar que é permitida. Se pensar é agradecer, ele constitui-se, na sua essência, como uma capacidade de abertura e de receptividade. Ele é sempre o acolhimento de um estrangeiro ou, o que é o mesmo, a confrontação (no sentido alemão de uma Auseinandersetzung) com algo estranho, com um outro irredutível ao mesmo que nos constitui. Mas neste acolhimento que é confrontação, o pensar não é, ao agradecer, passivo. Pelo contrário, ele é puro acto, pura actividade, pura energeia que, como tal, não pode deixar de se ver sempre projectada em algo que lhe dá efectividade: esse algo é a ideia. E é a ideia, a inevitável projecção em que o pensar se projecta, que por vezes se torna perigosa: sem ideias, a história universal teria sido certamente mais pacífica; se os homens se movessem por interesses, e não por ideias, o seu percurso no mundo estaria mais próximo de um sonolento e inócuo passeio bucólico do que de um desfile de conflitos, agressões, guerras e violências várias. Mas como explicar então o perigo que as ideias constituem ou, pelo menos, podem constituir? É que se as ideias são a efectivação do pensar, a sua necessária projecção intencional, elas são também, e justamente por essa razão, a possibilidade da sua cristalização. Pensar é então duas coisas essenciais, inseparáveis e irredutíveis: por um lado, uma actividade que pressupõe uma abertura, um acolhimento do estranho, uma projecção para fora; por outro, a exposição à permanente ameaça da cristalização, e a exigência de sempre, a cada passo, lhe resistir.