Caminhos Errantes

sexta-feira, agosto 29, 2003

The meaning of life

Uma das mais interessantes características da “blogosfera” é a do ritmo em que se supõe dever escrever. Dentro de certos limites, é comum a impressão de que a página tem de ser renovada com frequência, sob pena de morte. E, neste ritmo, o que fica para trás ganha inevitavelmente, por recente que seja, um aspecto anacrónico. Independentemente disso, e com o risco do anacronismo, gostaria de regressar ao texto The meaning of life, de Paulo Varela Gomes, escrito nesse já longínquo dia 25 de Agosto.

O pano de fundo é genericamente o da afirmação de que “terroristas” e “extremistas (ou belicistas) americanos” são, no essencial, iguais. Para PVG, eles confundem-se, diferenciando-se como grupo de um tipo de homens distinto, capaz de aceitar o real sentido da vida. E qual é ele? Diz PVG: «A História não passa da história de uma espécie de seres vivos a procurar crescer e multiplicar-se». Temos então, segundo PVG, a existência de dois tipos de homens fundamentais: dito numa linguagem de sabor nietzschiano, os que afirmam a vida e os que a negam. Por um lado, surgem aqueles que aceitam “a vida como ela é”. Para estes, viver é apenas “crescer e multiplicar-se”, adiando a morte tanto quanto possível, expandindo a vida só por viver, sem perturbações dispensáveis e com a “anestesia” possível. Por outro lado, surgem os “brutos”, aqueles para cuja caracterização PVG elege o título “humanistas”: aqueles que dedicam a vida a um fim maior, sacrificando-a em nome de uma meta que a transcende. Os primeiros são cépticos e sensatos, contribuindo consciente ou inconscientemente para uma expansão óptima da vida. Os segundos são fanáticos e sempre, pelo menos potencialmente, perigosos.
No fundo, a distinção elaborada por PVG baseia-se nas duas possibilidades de resposta a esse velho dilema, tantas vezes repetido e glosado: vivemos para comer ou comemos para viver? Segundo PVG, os homens sensatos sabem que vivem para comer: sabem que a vida consiste justamente apenas em ir vivendo, em ir alimentando e reproduzindo a vida. Os outros, os fanáticos, pelo contrário, sejam eles «os terroristas, os comunistas, os fascistas, os extremistas americanos» (mas também os religiosos, os generosos, os heróis ou os mártires de qualquer espécie), comem apenas em função de um fim que justifique a vida na sua manutenção; vivem (ou querem viver) para uma “vida maior”, capaz de sacrificar a “vida mundana”; respiram em função de uma meta, de uma ideia, de um telos que não se esgote apenas no crescimento e na reprodução.
Parece, no entanto, que a imagem de PVG não dá conta de uma distinção que, para o caso, é essencial. É que muitos dos “extremistas americanos” a que PVG se refere, assim como grande parte daqueles que apoiaram a intervenção americana e britânica no Iraque, são politicamente liberais. E isso quer dizer que eles partem não de uma “doutrina englobante”, de uma “visão do mundo” que pretendem impor e confirmar pela força, não da adesão a uma ideia do que seja o fim ou a felicidade da vida humana, mas justamente da posição contrária: da ideia de que esse fim é relativo, situado culturalmente e, portanto, de que é impossível e ocioso tentar sequer encontrar para a vida humana um fim que a transcenda. Os defensores liberais da invasão do Iraque, de que Pacheco Pereira é aliás um óptimo exemplo, estão, como PVG reconhece, do lado dos “homens sensatos”: eles são, quanto aos fins, quanto à teleologia, radicalmente distintos dos terroristas.
Mas se é assim, se os liberais americanos e europeus defensores da invasão fazem parte afinal do grupo dos “homens sensatos” e não dos “fanáticos”, será que PVG tem razão ao afirmar que os “terroristas” e os “extremistas americanos” (e europeus) são, no essencial, iguais? Penso que, no limite, sim. Mas isso deve-se a uma causa diferente da que por ele é assinalada: deve-se ao facto de a diferença entre os tipos de homem que identifica se estabelecer não em função do fim que eles servem, mas do princípio pelo que agem.
Na verdade, habituamo-nos cada vez mais a agir em função de princípios que não são nossos. E essa habituação é geral. Dir-se-ia que o tempo parece marchar no sentido de uma heteronomia cada vez mais radical. Apesar das retóricas humanistas, interpretamo-nos cada vez mais não como sujeitos, mas como objectos de uma história cujas leis não dominamos. Habituamo-nos a olhar para a vida dessa forma. E desse modo de olhar participamos hoje todos.
Quando PVG diz que a «história não passa da história de uma espécie de seres vivos a procurar crescer e multiplicar-se», ele vislumbra na vida uma espécie de génio subjacente ao homem, dirigindo-o em todos os seus movimentos e acções; e no homem apenas um objecto dirigido pelo génio da própria vida. Quando Hitler dizia que “combatendo o judeu cumpria os desígnios do senhor”, ele via-se a si mesmo como um servo, como um instrumento, como um objecto de uma história cujos movimentos o ultrapassam. E, finalmente, quando os nossos liberais contemporâneos defendem a guerra no Iraque debaixo de uma visão maniqueia do mundo, sob a imagem de uma luta entre a liberdade e o terror, entre o bem e o mal, eles dizem implicitamente que apenas fazem o que têm necessariamente de fazer, como instrumentos de um processo histórico em que o terror e o obscurantismo dão (ou devem dar) lugar à liberdade e à democracia. Por maiores que sejam as diferenças entre nazis e liberais, ou entre beligerantes euro-americanos e terroristas, une-os uma mesma essência, uma mesma perspectiva subjacente à diversidade das suas visões da história: a gradual transformação do homem, de sujeito livre da história em objecto feito e mobilizado por ela. Diante dessa perspectiva comum, talvez tenhamos de pensar, de repensar e de repensar ainda na frase de Ernst Jünger: basta um homem para provar que a liberdade ainda não desapareceu – mas desse temos necessidade.