Caminhos Errantes

domingo, agosto 24, 2003

A defesa e o terror

«O homem à  defesa é mais malévolo que o homem ao ataque. À defesa, ele sente-se no direito, e isso torna-o mau e dá-lhe a boa consciência de penalizar o inimigo vencido ou mesmo de educá-lo, isto é, de lhe inculcar uma outra alma»

Carl Schmitt, Glossarium (6 de Novembro de 1949)

Se a técnica faz inevitavelmente parte do nosso mundo, este não pode ser reduzido a uma estrutura técnica senão à custa da sua degradação. É, em larga medida, esta degradação que hoje por todo o lado irrompe. O âmbito mais perigoso onde a tendência para a simplificação técnica ocorre é o da política. Como exemplo, penso na retórica beligerante de parte dos nossos liberais contemporâneos: a alusão ingénua, quase pueril, a um eixo do mal, a distinção simples e clara entre o "mundo livre" e o universo obscuro do "mundo do terror". E penso, mais do que nessa retórica, nas suas consequências e nas suas implicações, mais longínquas que imediatas. Das sociedades liberais contemporâneas faz parte a ficção útil e eficaz de um como se, de um als ob: na sua vida quotidiana, estas vivem como se fossem sociedades essencialmente não agressivas. Os cidadãos liberais consideram-se a si mesmos, para usar uma expressão de Rafael del Águilla, "cidadãos impecáveis". Intransigentes nos seus princí­pios, eles não admitem senão uma agressão defensiva, uma guerra de defesa. A principal caracterí­stica dos Estados liberais talvez seja a sua resistência contra a pura e simples declaração de guerra. E nessa resistência está em marcha o processo de redução e de simplificação que marca o movimento da nossa história: todo o ataque é agora reduzido à defesa, toda a guerra, por complexa que seja a sua conjuntura, é agora justificada sob a forma simples de uma prevenção defensiva de danos maiores. Por mais que um Estado liberal seja o agressor, faz parte do liberalismo a incapacidade de atacar e, portanto, a necessidade de atacar apenas sob a desculpa envergonhada da defesa.
Houve, ao longo da história, vários tipos de guerra, cada uma com a sua regulação jurí­dica, cada uma com as armas adequadas à sua natureza conflitual: a guerra é um fenómeno complexo. Esta complexidade é-lhe constitutiva. Mas, para os nossos liberais contemporâneos, todas as guerras movidas por si são redutíveis a uma só forma simples: a guerra defensiva, a guerra dos "homens livres", na sua defesa da humanidade, contra as várias emergências do "mal" e do "terror". Toda a guerra movida por liberais é defensiva. E todo o liberal em guerra é, na verdade, um partisan. Mas acontece que uma guerra defensiva tem, pela sua natureza, a tendência para ser crescentemente aterradora. Quem combate um inimigo, quem ataca um adversário, pode olhá-lo nos olhos e respeitá-lo. Mas quem vê no adversário apenas o criminoso de que é necessário defender-se, quem diante dele, movido pelo ódio que o medo suscita, apela para uma guerra de defesa diante da configuração simples do mal, quem se atira simultaneamente como parte e como juiz contra o seu inimigo, não pode deixar de estimular em si próprio o mais aterrador desejo da sua aniquilação total.