Caminhos Errantes

sábado, agosto 23, 2003

Não há nada de novo debaixo do Sol....

O mais inequívoco sinal do progresso consiste na redução do complexo ao simples. A simples reflexão sobre a história do progresso técnico serve para confirmar a clareza meridional desta verdade. O começo está sempre cheio de modelos complexos, de experiências abandonadas, de mecanismos difíceis, de equilíbrios arriscados: numa palavra, de aparelhos estranhos, dificilmente reprodutíveis, cujos protótipos são frequentemente exemplares únicos de museu. Assim, no âmbito da técnica, a abertura do progresso consiste genericamente na descoberta do modo de reduzir a complexidade inicial, reproduzindo em série um modelo que, pela sua simplicidade, e utilizando uma terminologia jüngeriana, deixa de ser um indivíduo e passa à condição de tipo. Apesar dos romantismos artísticos, há muito que a nossa civilização técnica deixou de valorizar aquilo que é único. Ao contrário: a reprodutibilidade do que é simples é hoje simultaneamente a mais inequívoca causa e o mais inequívoco sintoma da valorização. Veja-se, por exemplo, os lamentos sinceros que suscitou em todo o mundo o recente encerramento definitivo da última fábrica dos Volkswagen “carocha”. E imagine-se, em contrapartida, as reacções ao anúncio de uma televisão ou de um automóvel que fosse uma espécie traduzida num único exemplar: um modelo absolutamente individual, original e incompatível com o que quer que fosse. Se os antigos adivinhavam no mundo uma hierarquia rigorosa que jamais se poderia sobrepor ou reduzir, se os nominalistas viam nele um conjunto de indivíduos apenas impropriamente agrupáveis, a nossa civilização existe sob a figura de uma rede em que todos os indivíduos, apesar da sua complexidade e da sua diferença inicial, acabarão por se deixar reduzir à estrutura simples em que um mesmo se tornará, sob várias figuras e aspectos acidentais, indefinidamente reproduzido. Mas a essência da técnica, como dizia Heidegger, não é nada de técnico. A essência da técnica penetra hoje por todos os poros daquilo que somos. A nossa sociedade liberal, a sociedade das infinitas diferenças só e possível por estas serem várias configurações do mesmo. Ela não é, na sua apenas aparente complexidade, senão uma triste confirmação do lamento do Eclesiastes: nada há de novo debaixo do Sol...