Morte no Iraque
A morte de Sérgio Vieira de Mello no Iraque é e representa uma desgraça. Como se imagina, não conheci Vieira de Mello. Mas não me posso furtar a participar daquela comoção sentida em Portugal, sobretudo depois das funções por ele ainda recentemente exercidas em Timor. É interessante ler pessoas que certamente, tal como eu, não o conheciam caracteriza-lo invariavelmente como um homem bom. Não duvido de que a homenagem seja sentida. Uma morte é sempre perturbadora. Mas uma morte que albergue um rosto terá sempre o poder singular de nos despertar a atenção para o que radicalmente somos, levando-nos à confrontação inevitável, mesmo que apenas momentânea, com a nossa mais própria, mais intransferível, mais solitária possibilidade de vida: a possibilidade de morrer. Mas a morte de Sérgio Vieira de Mello não apenas é, mas representa. E o que ela representa é, se bem que não no mesmo grau, inquietante. Enquanto representação, esta morte manifesta simultaneamente três sintomas perturbadores. Em primeiro lugar, e para além da falta de informações sobre o que realmente se passa no Iraque, ela representa a continuação persistente (talvez até crescente) de uma guerra de guerrilha, a qual era aliás, tendo em conta a desproporção dos meios bélicos e dos recursos técnicos dos beligerantes, a única actividade previsível contra os exércitos de ocupação. Em segundo lugar, ela manifesta ou a falta de capacidade das potências ocupantes para a evitar este tipo de danos (colaterais?) em civis mandatados pelas Nações Unidas, ou o desinteresse destas mesmas potências em garantir prioritariamente a sua segurança. Em terceiro lugar, ela dá indícios de que a retórica criminalizante sobretudo dos Estados Unidos produz crescentemente o efeito previsível de destruir, entre a população local, a sua capacidade de diferenciar as potências ocupantes da generalidade do mundo ocidental ou mesmo das Nações Unidas. À margem destes indícios, poderemos certamente chorar a morte de Sérgio Vieira de Mello, enquanto uma outra notícia não despertar a nossa curiosidade sempre saltitante, sempre disposta num processo ininterrupto de esquecimento. Mas, diante destes indícios, e diante dos lamentos que por todo o lado ecoam, talvez não seja possível libertarmo-nos da sensação de que estes evocam na sua larga maioria a célebre frase de Estaline: uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística.
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