A modernidade do cristianismo
«O homem está separado de Deus e unido. Todo o traço de separação é de união e vice-versa - a ponte e o abismo. O homem e Deus! a razão e o absurdo! Mas se Deus não fosse um absurdo, quem lhe ligaria importância ou acreditaria nele? Quem se atreveria a adorá-lo ou a negá-lo? Só amamos o absurdo e o impossível! E há nisto um grande sinal.»
Teixera de Pascoaes, O homem universal, Lisboa, Assírio e Alvim, 1993, p. 65.
Interrogo-me, por vezes, se no cristianismo o tempo não correrá ao contrário. O tempo cristão parece-me desenrolar-se como o tempo de Cronos naquele mito platónico, em que os homens nasciam velhos do seio da terra, morrendo depois por serem demasiado novos, como uma semente, no ventre materno.
O cristianismo originário, o das primeiras comunidades cristãs, é o primeiro fenómeno essencialmente moderno. Os primeiros cristãos viveram, como se sabe, na expectativa do fim dos tempos iminente. A destruição do mundo deveria surgir a qualquer instante, irrompendo como um "ladrão na noite". O próprio tempo, na sua lei inexorável (a lei da morte), tinha já sido derrotado pelo "escândalo" paulino do anúncio de um homem-Deus ressuscitado. Os homens rebelavam-se finalmente contra o mundo, numa stasis que lhes manifestava a pertença a um destino e a uma vocação maior. A separação eminentemente moderna entre "liberdade" e "natureza", entre um mundo regido por uma férrea legalidade natural e um homem que nele se encontra como um sujeito livre, intimamente indeterminado por essa mesma lei, ganha nestes primeiros tempos cristãos a sua configuração originária.
E surgem, a partir daqui, as várias seitas, as várias gnoses, as sementes de uma rebelião cada vez mais radical. Da parte de muitos, surge a rebelião (terrorista?) contra a ordem já superada deste mundo. Em Márcion, por exemplo, aparece a tentativa de matar o mundo através de um ascetismo que contrarie a naturalidade da sua lei. E, depois, não falta também a inevitável tentativa contrária, a procura de ver no cristianismo uma mera forma de continuação do poder imperial romano, vendo no carácter singular do poder de Deus a forma paradigmática que justificaria a continuação do poder de César. Mas, com o passar do tempo, eis que vai surgindo, no meio da rebelião, a grande perplexidade: a Revelação não trouxe consigo o fim. Apesar de ela ter desfeito as cortinas que cobriam a fragilidade do tempo, consumando-o, o homem não termina, mas inicia uma nova vida num tempo já consumado. Apocalipse e escatologia não coincidem. Um estranho travão, um katechon, impede a consumação definitiva, impondo o distender-se de um tempo que, depois da morte da sua própria lei, não deveria ter lugar.
Com este prolongamento paradoxal do tempo, a modernidade do cristianismo originário, no seu dualismo irredutível, no seu levantamento rebelde contra o mundo, conhece também a sua inversão essencial. O mundo e a rebelião contra o mundo, o tempo e a radical subversão da sua lei de morte, opostos irreconciliáveis, devem encontrar-se, numa coincidência contraditória, impossível de harmonizar. E uma tal coincidência é a Igreja: ela é então uma coincidência impossível, sempre determinada por um combate intrínseco, sempre "polémica"; o absurdo anúncio temporal da morte do próprio tempo; o sinal enigmático, no mundo, do fim deste mesmo mundo. Ela é assim a ultrapassagem da originária "modernidade cristã". Reduzi-la a menos que isso talvez seja já transformá-la numa cópia, que tantas vezes se torna grotesca, daquilo de que ela é a superação.
Teixera de Pascoaes, O homem universal, Lisboa, Assírio e Alvim, 1993, p. 65.
Interrogo-me, por vezes, se no cristianismo o tempo não correrá ao contrário. O tempo cristão parece-me desenrolar-se como o tempo de Cronos naquele mito platónico, em que os homens nasciam velhos do seio da terra, morrendo depois por serem demasiado novos, como uma semente, no ventre materno.
O cristianismo originário, o das primeiras comunidades cristãs, é o primeiro fenómeno essencialmente moderno. Os primeiros cristãos viveram, como se sabe, na expectativa do fim dos tempos iminente. A destruição do mundo deveria surgir a qualquer instante, irrompendo como um "ladrão na noite". O próprio tempo, na sua lei inexorável (a lei da morte), tinha já sido derrotado pelo "escândalo" paulino do anúncio de um homem-Deus ressuscitado. Os homens rebelavam-se finalmente contra o mundo, numa stasis que lhes manifestava a pertença a um destino e a uma vocação maior. A separação eminentemente moderna entre "liberdade" e "natureza", entre um mundo regido por uma férrea legalidade natural e um homem que nele se encontra como um sujeito livre, intimamente indeterminado por essa mesma lei, ganha nestes primeiros tempos cristãos a sua configuração originária.
E surgem, a partir daqui, as várias seitas, as várias gnoses, as sementes de uma rebelião cada vez mais radical. Da parte de muitos, surge a rebelião (terrorista?) contra a ordem já superada deste mundo. Em Márcion, por exemplo, aparece a tentativa de matar o mundo através de um ascetismo que contrarie a naturalidade da sua lei. E, depois, não falta também a inevitável tentativa contrária, a procura de ver no cristianismo uma mera forma de continuação do poder imperial romano, vendo no carácter singular do poder de Deus a forma paradigmática que justificaria a continuação do poder de César. Mas, com o passar do tempo, eis que vai surgindo, no meio da rebelião, a grande perplexidade: a Revelação não trouxe consigo o fim. Apesar de ela ter desfeito as cortinas que cobriam a fragilidade do tempo, consumando-o, o homem não termina, mas inicia uma nova vida num tempo já consumado. Apocalipse e escatologia não coincidem. Um estranho travão, um katechon, impede a consumação definitiva, impondo o distender-se de um tempo que, depois da morte da sua própria lei, não deveria ter lugar.
Com este prolongamento paradoxal do tempo, a modernidade do cristianismo originário, no seu dualismo irredutível, no seu levantamento rebelde contra o mundo, conhece também a sua inversão essencial. O mundo e a rebelião contra o mundo, o tempo e a radical subversão da sua lei de morte, opostos irreconciliáveis, devem encontrar-se, numa coincidência contraditória, impossível de harmonizar. E uma tal coincidência é a Igreja: ela é então uma coincidência impossível, sempre determinada por um combate intrínseco, sempre "polémica"; o absurdo anúncio temporal da morte do próprio tempo; o sinal enigmático, no mundo, do fim deste mesmo mundo. Ela é assim a ultrapassagem da originária "modernidade cristã". Reduzi-la a menos que isso talvez seja já transformá-la numa cópia, que tantas vezes se torna grotesca, daquilo de que ela é a superação.
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