Caminhos Errantes

quarta-feira, julho 30, 2003

A (i)limitação do poder

Habituamo-nos há muito a encontrar na autoridade do poder o contrapeso da liberdade. Com uma espontaneidade irreprimí­vel, associamos o poder, enquanto exercício de uma autoridade, a uma visão abrangente, a uma visão do alto que se exerce contra nós, sub-ordinando-nos, sub-metendo-nos, sub-jugando-nos, fazendo-nos cair (veja-se, sobre isso, as interpretações heideggerianas sobre o imperium romano, nas suas lições de 1943, dedicadas a Parménides). Com a mesma espontaneidade, defendemos o que somos, a nossa essencial liberdade, contra o poder da autoridade e a autoridade do poder. O poder surge-nos, na nossa quotidianeidade, como essencialmente violência (daí­ a ambiguidade que, no alemão, o termo Gewalt assume). E, com isso, a história da liberdade foi para nós, em larga medida, a história de uma limitação exterior do poder: o poder do príncipe que se limita pelo poder das cortes, na defesa parlamentarista de uma dupla representação; o poder do Estado que se limita pela sociedade civil; o poder do governo que se limita pelo princípio da soberania popular; o poder da autoridade que se limita pela sua subordinação a "guardiães" da lei.
Mas mesmo antes de ser limitado exteriormente, mesmo na fase em que se constituí­a como poder absoluto, o poder tinha uma essencial limitação intrí­nseca: uma tal limitação consistia na sua visibilidade. O poder visí­vel, mesmo o poder absoluto, era, enquanto visível, um poder solar, circunscrito por uma forma que o localizava. Vivemos hoje como se se tivesse consumado uma luta secular dos homens livres, da sociedade por eles formada, contra o poder e a autoridade. Derrotados os totalitarismos na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria que se lhe seguiu, o discurso polí­tico quotidiano alimenta-se da ideia de que vivemos numa espécie de "era do pós-poder". Com um tal discurso, não é propriamente o poder que desaparece, mas apenas a sua visibilidade. Vivemos como se o poder simplesmente não estivesse presente. Mas ele está presente sob a forma da sua invisibilidade. Ele aparece não aparecendo. E quanto mais invisível, mais intenso e menos limitado.