Prótese
Muito antes de Nietzsche ter anunciado no homem uma "ponte para o super-homem", já a essência do homem surgia como algo em aberto, em construção. A figura grega do herói como um daimon tem subjacente a ideia de um humano situado numa terra de ninguém, no lugar inexistente de uma linha fronteiriça onde apenas o mundano e o divino se tocam e se separam. A caracterização fransciscana do homem como aquilo que for aos olhos de Deus permite também adivinhar no homem esta permeabilidade à mudança, esta essencial descristalização. Talvez por isso, situados após o anúncio por Nietzsche do super-homem, tenhamos hoje tanta facilidade em integrar em nós elementos estranhos, assumindo-nos como algo que crescentemente é feito. A morte de Deus anunciada por Nietzsche cumpre-se nesta lenta destruição da natureza em nós, nesta abertura do homem como o campo indeterminado do possível. Neste homem, o corpo já não é natureza. Melhor dizendo: ele é, enquanto natureza, enquanto "vida nua" (para usar a expressão de Agamben), apenas a matéria-prima aberta à livre expressão de uma liberdade sem vínculos naturais. Neste corpo são agora gravadas cada vez mais profundamente as marcas da sua artificialidade: desde o adorno do piercing até à prótese cirúrgica. Mas nesta crescente cobertura do corpo humano pelas mais variadas próteses há hoje também uma viragem fundamental. Não se trata hoje de que o homem acolha, no seu corpo, as mais variadas transformações. Trata-se de que ele se transforme a si mesmo numa transformação, moldada pelo funcionamento de um processo em "roda livre" que, no seu decurso, não é mais que uma "liberdade sem sujeito". A transformação do homem em prótese é talvez a questão fundamental que anuncia o nosso futuro.
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