Caminhos Errantes

terça-feira, agosto 26, 2003

Como se...

No Semestre de Verão de 1934-35, na Universidade de Freiburg, Heidegger lia as suas primeiras lições dedicadas à poesia de Hölderlin. Por essa altura, ele já tinha abandonado o reitorado da Universidade, para onde tinha sido eleito em 1933, com o apoio do Partido Nacional-Socialista recentemente chegado ao poder. Contudo, a permanência da sua militância no partido, que se estendeu até ao final da Segunda Guerra Mundial, e as esporádicas mas elogiosas alusões à “grandeza e significado interior do movimento nacional-socialista”, que se estendem para além do reitorado, motivaram primeiro na Alemanha, mas depois sobretudo na França, o cíclico e crescente aparecimento de publicações acusatórias, denunciando o “nazismo” daquele que era considerado por muitos como o maior nome da filosofia alemã. Penso que é sobretudo contra as primeiras lições de Heidegger sobre Hölderlin que todas estas acusações chocam e se desfazem. Nelas, em sessões públicas vigiadas pela Gestapo e visitadas por jovens fardados, Heidegger atrevia-se a ridicularizar publicamente as teses biologistas apresentadas não apenas por um poeta apreciado pelo novo regime - Erwin Guido Kolbenheyer -, mas também pelo “pensador oficial” encarregado de estabelecer a Weltanschauung, a “visão do mundo” do ainda jovem movimento: Alfred Rosenberg, autor de O Mito do Século XX e chefe de redacção do jornal oficial do partido, o Völkischer Beobachter.
A avaliar pelas suas biografias, Heidegger não era um homem particularmente corajoso: o que lhe faltava em coragem sobrava-lhe certamente em argúcia, paixão filosófica e capacidade de intelecção. E este dado permite dar a entender que, na sua perspectiva, se tratava, nas suas lições sobre Hölderlin, de um assunto suficientemente grave e nuclear para que devesse, apesar da prudência imprescindível, arriscar a pele. A tese contra a qual Heidegger se atira nas lições é aparentemente banal e datada: a tese de que a poesia é uma função biológica de um povo saudável. Aparentemente, dir-se-ia que se trata de uma simples consequência de uma doutrina que se procurava estabelecer como um racismo biologista, onde a raça se erguia gradualmente como o factor determinante do homem, no seu pensamento e na sua actividade histórica. Aparentemente, portanto, dir-se-ia que se tratava de uma explicação da "poesia" a partir da "biologia", explicação cujo destino se colava ao destino do racismo nazi. Mas não é assim. E isso foi talvez Heidegger o primeiro a ter compreendido.
Derrotado o racismo nazi por aquilo a que os princípios políticos liberais hoje triunfantes gostam de chamar a “civilização”, o biologismo regressa e regressa, num eterno retorno, sob as mais variadas figuras, máscaras e transformações. Camuflado sob uma retórica política que continua a eleger como palavra de ordem a liberdade (concebida na herança da barreira protestante entre a intimidade da fé e a mundaneidade do corpo e das obras, regida esta por uma lei natural a cuja determinação a alma livre estaria imune) o biologismo aparece hoje não como uma “doutrina”, uma “tese” contestável, mas como um horizonte comum de referência partilhado consciente ou inconscientemente por todos como algo evidente. Falamos hoje, é certo, muito de liberdade. Mas quanto mais a reivindicamos, mais assumimos no quotidiano o homem como uma construção orgânica, sujeito à mesma lei de mobilização (penso na Mobilmachung de Ernst Jünger) de qualquer outra coisa: um homem determinado intimamente por uma lei que não é sua; um homem que se vê destinado a ser cada vez mais construído, na sua constituição mais íntima, por uma “engenharia biológica” (ou, o que é literalmente o mesmo, genética), num processo que tem nas técnicas de “manipulação das consciências”, por exemplo, na propaganda política ou na publicidade comercial, apenas um simpático prelúdio. No seu excelente blog, num texto intitulado The Meaning of Life, ainda em resposta a Pacheco Pereira, Paulo Varela Gomes tem sobretudo a virtude de abandonar a retórica humanista e de, neste abandono, fazer uma opção: «Aqueles que como JPP (ou eu próprio) que gostariam de contribuir para que a história se fizesse com "anestesia" como ele diz, ou seja, com menos sofrimento, fazem parte da força não-entrópica da espécie, do seu instinto, do seu impulso. Não serão os outros, os terroristas, os comunistas, os fascistas, os extremistas americanos, os verdadeiros "humanistas"? os que acreditam que a humanidade pode ser alguma coisa MAIS? que a humanidade pode traçar-se um destino não animal ou vegetal?». Apesar das más companhias, penso que talvez seja mais saudável (e quem sabe mais verdadeiro) tentar permanecer do lado contrário. Importa, pelo menos, tentar, na lógica de uma “filosofia do como se…”, que Vaihinger elaborou e que Pacheco Pereira, no seu diálogo com Paulo Varela Gomes, evoca. É certamente mais perigoso, pois perderemos a capacidade de nos dividirmos simplesmente em distinções claras e duais, vendo o mundo claramente dividido entre "bem" e "mal", "branco" e "negro". Mas, recuperando apenas para este propósito um velho conceito nazi, que aliás tem sido cada vez mais ingenuamente recuperado, talvez uma vida demasiado anestesiada não seja digna de ser vivida.