Claro que se pode ser simpático
Verifiquei que o Pedro Mexia se mostrou surpreso ( parece-me que até desagradado) pelo que escrevi no post anterior, a propósito da sua simpática saudação ao aparecimento dos Caminhos Errantes. Ele diz que não gostei da sua saudação e que "já não se pode ser simpático". Antes de mais, importa esclarecer uma coisa: claro que não apenas simpatizo muito com o Pedro como gostei da sua simpática saudação. Quando escrevi que o Pedro «não procurou senão fazer-me uma simpática referência, a qual, como é natural, agradeço e retribuo», não há nesta frase a mais pequena ironia ou equivocidade. Entendamo-nos, antes de mais, sobre alguns pressupostos básicos, que não gostaria de ver afectados por qualquer dúvida. É claro que o Pedro foi simpático ao dirigir-se a mim como se dirigiu. É claro que gostei e agradeço a sua saudação. É claro que tem todo o direito de discordar de mim no que bem quiser e entender. É claro que a vida é, felizmente, feita de diferenças e de divergências. É claro que, apesar de não nos encontrarmos e não falarmos há algum tempo (com pena minha), não apenas tenho grande simpatia pessoal pelo Pedro como aprecio muito as suas incontestáveis qualidades literárias. Dito isto, esclareçamos e justifiquemos também, com a brevidade possível, o conteúdo das minhas observações aos seus comentários.
Naquilo que disse, no fundo, afirmei (e mantenho) duas coisas, que gostaria de conservar separadas. Primeiro: que os comentários do Pedro têm subjacentes pressupostos políticos teoricamente muito superficiais, que são aliás comuns nessa espécie de "moda blogosférica portuguesa" daquilo a que se poderia chamar (se quisermos falar em termos de "famílias politicas") o conservadorismo liberal. Segundo: que alguns comentários políticos do Pedro acabam por estimular, quer ele o queira quer não, uma reprodução clonada de lugares comuns, em que a "blogosfera" (e não só) tem sido fértil, que têm como "dano colateral" inevitável o estabelecimento de pré-juízos e de pré-conceitos que, frequentemente, só se conseguem satisfazer e alimentar a partir da eleição de algumas pessoas como "vítimas sacrificiais" (Réné Girard, por exemplo, explica bem este "procedimento sedutor"). Limitar-me-ei à justificação do primeiro ponto, posto que o segundo parece-me óbvio e ilustrável, se preciso for, por vários exemplos.
Não quero, como disse no post anterior (e digo-o sinceramente), cometer injustiças. Mas parece-me que o Pedro parte do pressuposto de que há à "direita", no fundo, duas "famílias políticas", caracterizáveis a primeira como "conservadora liberal" e a segunda pela negativa (não-liberal e não-conservadora) ou, na falta de melhor, pelo seu carácter "pouco recomendável". O esquema é, parece-me, representável de um modo muito simples e linear. A primeira das "famílias políticas" é de raiz anglo-saxónica, empirista e liberal; acredita na sociedade civil e num conservadorismo prudencial; tem como principal valor a vida privada (a liberdade dos modernos) e gerou, na pior das hipóteses, figuras políticas como Margaret Thatcher. A segunda é de raiz continental, racionalista e autoritária; acredita no Estado e num reaccionarismo contra-revolucionário; tem como principal valor a vida pública (a liberdade dos antigos) e talvez tenha gerado, na melhor das hipóteses, figuras politicas como Mussolini. Por isso o Pedro conclui o seu post desta forma: «as consequências de algumas das ideias da direita não-conservadora e não-liberal são amplamente conhecidas. Por isso as considerei pouco recomendáveis».
Esta distinção parece-me, no máximo, aproveitável para explicar, de um modo muito genérico e não abrangente, alguns matizes da situação política europeia até ao final da Segunda Guerra Mundial. Mas é não apenas demasiado simples, como ineficaz para compreender, na sua complexidade e nos seus problemas fundamentais, as actuais sociedades ocidentais. Parece-me que estas sociedades são marcadas por problemas para cuja abordagem este tipo de "catalogações" (foi neste sentido que usei o termo) é muito pobre e inevitavelmente míope. Cito apenas alguns dos problemas a que me refiro, como exemplo do que quero dizer. Eles estendem-se, por exemplo, pela invisibilização do poder nas sociedades liberais contemporâneas e a sua confusão com a ausência pura e simples de estruturas de poder. Ou pela relação do homem actual com o corpo e as questões relacionadas com a bioética e a biopolítica, no advento para o homem daquilo a que se poderia chamar, para usar o título do livro de Fukuyama, o seu "futuro pós-humano". Ou pela herança directa pelas sociedades liberais do pós-guerra do mais marcante atributo do movimento nazi: o biologismo ou a ideia de uma determinação biológica do homem. Ou pela influência dos media (e o papel dos novos media) na formação e manipulação não apenas das opiniões, mas, mais que isso, das próprias disposições anímicas, do próprio íntimo do homem contemporâneo: o facto de a televisão ter hoje, nas nossas sociedades liberais, um impacto e uma capacidade de influência tão grande quanto invisível, incomparavelmente maior que a propaganda radiofónica de Goebbels na Alemanha nazi. Ou pela crise institucional do parlamentarismo e por aquilo a que se poderia chamar o culto político da ingenuidade e da menoridade intelectual, numa vida política que é essencialmente (e não conjunturalmente) festivaleira. Ou pelo culto da imagem e a desvalorização da palavra escrita. Ou pela perda do "espaço público", do debate efectivo (e não apenas aparente) e do forum, tal como assinala, por exemplo, Alasdair McIntyre. Ou pelo aparecimento de uma espécie de sociedade do espectáculo (para usar a expressão de Guy Debord) em que a vida privada é a única entidade que aparece como digna de ser exposta publicamente: a transformação da vida pública numa espécie de versão do Big Brother; etc., etc.. Para a consideração de temas e problemas desta natureza (que são os que hoje politicamente contam) não me parece que as distinções e catalogações propostas, repetidas e infinitamente glosadas, contribuam grandemente. Mas contribuem as análises de autores como Jünger, Heidegger ou Carl Schmitt (entre muitos outros, "catalogáveis" à esquerda e à direita), nas suas reflexões sobre a técnica, a vida pública ou a funcionalização da vida humana, por exemplo, sendo essa a razão pela qual é simplesmente redutor e equívoco caracteriza-los, ainda que sumariamente, como representantes de uma "direita não-liberal e não-conservadora" pouco recomendável. Dizer, por exemplo, que Carl Schmitt é «o mais brilhante artífice de um esquema teórico de legitimação do nazismo», como diz o Pedro, é, por razões que poderei explicar noutro post, relativamente absurdo, mas ainda assim sustentável, tendo em conta as fugazes aspirações de Schmitt a uma carreira política entre 1933 e 1936, numa interessante e complexa rede política (aliás muito parecida com os actuais bastidores partidários) que o tornou protegido de Goering e atacado com sucesso por Rosenberg e Himmler devido ao seu catolicismo (uma boa biografia é a de Paul Noack, Carl Schmitt: eine Biographie). Mas já dizer que Heidegger «é um autor de uma determinada área política que em certa altura assumiu a forma de nacional-socialismo» é pura e simplesmente errado, tendo em conta não apenas que Heidegger critica abertamente já desde 1933 doutrinas racistas e antisemitas, como que o "pensamento político" heideggeriano pretende encontrar o fundamento do nacional-socialismo num processo a que ele chama um domínio crescente do homem sobre todos os entes (um "esquecimento do ser"), vislumbrando neste mesmo processo - e esse talvez seja o ponto escandaloso, mas interessante - uma continuidade essencial entre as doutrinas völkisch e biologistas dos nazis e as doutrinas "humanistas" das democracias liberais. Assim, caracterizar Jünger ou Heidegger ou Schmitt (ou Nietzsche ou Marx ou Platão ou Sloterdijk) sob a grelha esquemática que o Pedro propõe significa pura e simplesmente perder não apenas a riqueza dos seus pensamentos, mas reduzi-los injustamente a uma espécie de manifestção esporádica e ocasional, previsível e antecipável. E uma tal perda é, no mínimo, um desperdício.
Fico por aqui, num post que já vai demasiado longo para o que tinha em mente como uma breve resposta ao Pedro. Queria, no entanto, voltar a agradecer-lhe a simpatia da referência aos Caminhos Errantes e (apesar da distância) a amizade, que é recíproca. Como ele diz no final do seu post, acima das ideias estão as pessoas. E nisso estamos obviamente de acordo.
Naquilo que disse, no fundo, afirmei (e mantenho) duas coisas, que gostaria de conservar separadas. Primeiro: que os comentários do Pedro têm subjacentes pressupostos políticos teoricamente muito superficiais, que são aliás comuns nessa espécie de "moda blogosférica portuguesa" daquilo a que se poderia chamar (se quisermos falar em termos de "famílias politicas") o conservadorismo liberal. Segundo: que alguns comentários políticos do Pedro acabam por estimular, quer ele o queira quer não, uma reprodução clonada de lugares comuns, em que a "blogosfera" (e não só) tem sido fértil, que têm como "dano colateral" inevitável o estabelecimento de pré-juízos e de pré-conceitos que, frequentemente, só se conseguem satisfazer e alimentar a partir da eleição de algumas pessoas como "vítimas sacrificiais" (Réné Girard, por exemplo, explica bem este "procedimento sedutor"). Limitar-me-ei à justificação do primeiro ponto, posto que o segundo parece-me óbvio e ilustrável, se preciso for, por vários exemplos.
Não quero, como disse no post anterior (e digo-o sinceramente), cometer injustiças. Mas parece-me que o Pedro parte do pressuposto de que há à "direita", no fundo, duas "famílias políticas", caracterizáveis a primeira como "conservadora liberal" e a segunda pela negativa (não-liberal e não-conservadora) ou, na falta de melhor, pelo seu carácter "pouco recomendável". O esquema é, parece-me, representável de um modo muito simples e linear. A primeira das "famílias políticas" é de raiz anglo-saxónica, empirista e liberal; acredita na sociedade civil e num conservadorismo prudencial; tem como principal valor a vida privada (a liberdade dos modernos) e gerou, na pior das hipóteses, figuras políticas como Margaret Thatcher. A segunda é de raiz continental, racionalista e autoritária; acredita no Estado e num reaccionarismo contra-revolucionário; tem como principal valor a vida pública (a liberdade dos antigos) e talvez tenha gerado, na melhor das hipóteses, figuras politicas como Mussolini. Por isso o Pedro conclui o seu post desta forma: «as consequências de algumas das ideias da direita não-conservadora e não-liberal são amplamente conhecidas. Por isso as considerei pouco recomendáveis».
Esta distinção parece-me, no máximo, aproveitável para explicar, de um modo muito genérico e não abrangente, alguns matizes da situação política europeia até ao final da Segunda Guerra Mundial. Mas é não apenas demasiado simples, como ineficaz para compreender, na sua complexidade e nos seus problemas fundamentais, as actuais sociedades ocidentais. Parece-me que estas sociedades são marcadas por problemas para cuja abordagem este tipo de "catalogações" (foi neste sentido que usei o termo) é muito pobre e inevitavelmente míope. Cito apenas alguns dos problemas a que me refiro, como exemplo do que quero dizer. Eles estendem-se, por exemplo, pela invisibilização do poder nas sociedades liberais contemporâneas e a sua confusão com a ausência pura e simples de estruturas de poder. Ou pela relação do homem actual com o corpo e as questões relacionadas com a bioética e a biopolítica, no advento para o homem daquilo a que se poderia chamar, para usar o título do livro de Fukuyama, o seu "futuro pós-humano". Ou pela herança directa pelas sociedades liberais do pós-guerra do mais marcante atributo do movimento nazi: o biologismo ou a ideia de uma determinação biológica do homem. Ou pela influência dos media (e o papel dos novos media) na formação e manipulação não apenas das opiniões, mas, mais que isso, das próprias disposições anímicas, do próprio íntimo do homem contemporâneo: o facto de a televisão ter hoje, nas nossas sociedades liberais, um impacto e uma capacidade de influência tão grande quanto invisível, incomparavelmente maior que a propaganda radiofónica de Goebbels na Alemanha nazi. Ou pela crise institucional do parlamentarismo e por aquilo a que se poderia chamar o culto político da ingenuidade e da menoridade intelectual, numa vida política que é essencialmente (e não conjunturalmente) festivaleira. Ou pelo culto da imagem e a desvalorização da palavra escrita. Ou pela perda do "espaço público", do debate efectivo (e não apenas aparente) e do forum, tal como assinala, por exemplo, Alasdair McIntyre. Ou pelo aparecimento de uma espécie de sociedade do espectáculo (para usar a expressão de Guy Debord) em que a vida privada é a única entidade que aparece como digna de ser exposta publicamente: a transformação da vida pública numa espécie de versão do Big Brother; etc., etc.. Para a consideração de temas e problemas desta natureza (que são os que hoje politicamente contam) não me parece que as distinções e catalogações propostas, repetidas e infinitamente glosadas, contribuam grandemente. Mas contribuem as análises de autores como Jünger, Heidegger ou Carl Schmitt (entre muitos outros, "catalogáveis" à esquerda e à direita), nas suas reflexões sobre a técnica, a vida pública ou a funcionalização da vida humana, por exemplo, sendo essa a razão pela qual é simplesmente redutor e equívoco caracteriza-los, ainda que sumariamente, como representantes de uma "direita não-liberal e não-conservadora" pouco recomendável. Dizer, por exemplo, que Carl Schmitt é «o mais brilhante artífice de um esquema teórico de legitimação do nazismo», como diz o Pedro, é, por razões que poderei explicar noutro post, relativamente absurdo, mas ainda assim sustentável, tendo em conta as fugazes aspirações de Schmitt a uma carreira política entre 1933 e 1936, numa interessante e complexa rede política (aliás muito parecida com os actuais bastidores partidários) que o tornou protegido de Goering e atacado com sucesso por Rosenberg e Himmler devido ao seu catolicismo (uma boa biografia é a de Paul Noack, Carl Schmitt: eine Biographie). Mas já dizer que Heidegger «é um autor de uma determinada área política que em certa altura assumiu a forma de nacional-socialismo» é pura e simplesmente errado, tendo em conta não apenas que Heidegger critica abertamente já desde 1933 doutrinas racistas e antisemitas, como que o "pensamento político" heideggeriano pretende encontrar o fundamento do nacional-socialismo num processo a que ele chama um domínio crescente do homem sobre todos os entes (um "esquecimento do ser"), vislumbrando neste mesmo processo - e esse talvez seja o ponto escandaloso, mas interessante - uma continuidade essencial entre as doutrinas völkisch e biologistas dos nazis e as doutrinas "humanistas" das democracias liberais. Assim, caracterizar Jünger ou Heidegger ou Schmitt (ou Nietzsche ou Marx ou Platão ou Sloterdijk) sob a grelha esquemática que o Pedro propõe significa pura e simplesmente perder não apenas a riqueza dos seus pensamentos, mas reduzi-los injustamente a uma espécie de manifestção esporádica e ocasional, previsível e antecipável. E uma tal perda é, no mínimo, um desperdício.
Fico por aqui, num post que já vai demasiado longo para o que tinha em mente como uma breve resposta ao Pedro. Queria, no entanto, voltar a agradecer-lhe a simpatia da referência aos Caminhos Errantes e (apesar da distância) a amizade, que é recíproca. Como ele diz no final do seu post, acima das ideias estão as pessoas. E nisso estamos obviamente de acordo.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home