Caminhos Errantes

sexta-feira, setembro 12, 2003

Uma polémica anacrónica

Hesitei um pouco em publicar este post, em parte pelo seu carácter anacrónico, em parte porque não me interessa alimentar certo tipo de polémicas. Mas julgo que, pensando bem, o devo fazer. Vem ele a propósito de um email que recebi da Clara Macedo Cabral há dois dias, onde ela se referia ainda a uma passagem do post em que o Pedro Mexia me respondeu. A passagem é a seguinte: «Não acho sejas fascistal Mas verás que os blogs fascistas já professaram a sua estima por ti. Isso a mim preocupava-me». E, sobre isso, chamando-me a atenção para um artigo do público que eu não tinha lido, mas ao qual o Pedro se tinha referido, a Clara diz-me que (reproduzo com licença dela) «o Pedro tem razão quando diz que os blogs fascistas dizem bem de ti». Em função disso, ela dá-me dois conselhos. Primeiro: «eu continuo a achar que como tradutor que és de Schmitt e de Heidegger te devias demarcar de suspeições anti-semitas». Segundo: «Ó Alex, tu devias demarcar-te dessa gente, senão qualquer dia temos o melhor blog de filosofia em Portugal associado a camisas negras».
Devido a outras ocupações, há muita coisa que me escapa. E a "Gazeta dos Blogs" do Público escapou-me. Como só a li agora, bem como à nota do Dicionário do Diabo sobre ela, apesar do anacronismo das referências e mesmo fora de tempo, gostaria de deixar apenas cinco notas sobre o mail da Clara:

1. O artigo do Público. O artigo do Público é obviamente algo feito ou por má-fé, ou por ligeireza ou pelas duas coisas. Conheço alguns jornalistas e sei como é: por vezes tem de se escrever sem saber o quê, à pressa e sem pensar. Mas por vezes também se cede à tentação de aproveitar o facto de se escrever num jornal para fazer processos de intenção e julgamentos sumários contra pessoas honestas que ficam necessariamente sem defesa. Sobre quem procede assim não há muito a dizer: um jornalista que o faz simplesmente não honra, no momento em que o faz, a sua profissão. E foi o que patentemente aconteceu neste caso. Além disso, embora não queira alimentar polémicas desnecessárias, a justiça manda que diga que o argumentum ad hominem do Pedro foi, neste caso, um pouco infeliz. Bem sei que o bom senso e o instinto de sobrevivência aconselham, sobretudo neste país, a não irritar jornalistas. Mas, que diabo, não se pode sacrificar tudo, escrevendo coisas que fazem jus aos tempos do PREC, simplesmente para ter uma “glória fácil”…

2. O “fascismo”. O “fascismo” não é para mim uma arma de arremesso, como aconteceu com a "Gazeta dos Blogs" do público, que deu ao termo um conteúdo semântico que evoca uma espécie de "espírito de saneamento". De notar que os próprios italianos (que dão cartas em filosofia política) usam simplesmente o termo fascista com o sentido que ele tem: uma teoria política datada, a que se prende, quando muito, o gosto por determinados escritores, pensadores, artistas e poetas, uma sensibilidade, um “ethos” e uma “estética” a que algumas pessoas por educação são hoje sensíveis e outras, pela mesma razão, não são. Lembro-me de um filme magnífico do Moretti (que não me consta que seja fascista) – o Aprile – em que o termo aparece com esse sentido, justamente durante as filmagens dos festejos do 25 de Abril em Itália, e não como um instrumento útil para demonizar fácil e gratuitamente quem quer que seja.

3. Os chamados “blogs fascistas”. No artigo do público vêm catalogados como “fascistas” (devido apenas aos links que estabelecem) dois dos melhores blogs portugueses – o Sexo dos Anjos e o Último Reduto, respectivamente de Manuel Azinhal e de Pedro Guedes –, que, juntamente com outros, me fizeram referências muito simpáticas e a quem eu já devia ter agradecido publicamente. Quanto ao Sexo dos Anjos, não sei se é pelo facto de ser meio alentejano, mas os textos do Manuel Azinhal produziram em mim uma simpatia imediata: eles combinam na perfeição uma capacidade de análise, uma sensibilidade e um sentido de humor que é raro encontrar por aí. Quanto ao Último Reduto, que só conheci depois de ler o artigo do público, foi para mim uma descoberta. Trata-se simplesmente de um blog muito bem escrito e culto, com ironia e inteligência inquestionáveis. Não é uma opinião: é um facto. E a elevação da sua resposta à autora do artigo, no contexto em que se arremessava contra ele, gratuitamente e sem hipótese de defesa, uma “arma de destruição maciça”, dá sem mais o testemunho desse facto.

4. Os “links”. Parece que o único motivo de escândalo da autora do artigo do´Público foi, nesses blogs, os links para o Partido Nacional Renovador e movimentos políticos europeus que com ele têm relações. Devo dizer que tais links não me preocupam grandemente. Estou em muitas coisas em desacordo com o PNR (por exemplo, em relação à questão da imigração, que é a que talvez lhe dê mais publicidade). Mas isso não faz com que ache que pessoas deste partido devam ser ostracizadas, demonizadas, marginalizadas, criminalizadas ou sentenciadas num processo sumário de intenções que é, além disso, degradante sob o ponto de vista humano. Nem me parece que o PNR tenha qualquer especificidade que o torne particularmente imoral face a outros partidos políticos - sobretudo num país onde é perfeitamente aceite que se ganhem eleições a distribuir aventais de plástico em feiras e festas várias, e onde é frequente que a principal preocupação dos dirigentes partidários seja a de aparecer na televisão a certa hora.

5. Conselhos e elogios. Não percebo porque razão um tradutor de Heidegger e de Schmitt deva ser aconselhado a demarcar-se de posições anti-semitas. É verdade que Schmitt, entre 1933 e 1936, influenciado pelo catolicismo da época e pela frustrada vontade de uma carreira política como Secretário de Estado da Justiça, usa expressões anti-semitas (nomeadamente num congresso em 1936, intitulado: A ciência jurídica alemã em luta contra o judaísmo). Mas é também verdade que essas expressões nunca foram assumidas de forma racista (mas apenas cultural) e que Carl Schmitt (com a sua mulher Duschka, que era sérvia) se arriscou nessa época ajudando alunos e amigos judeus (como, por exemplo, Leo Strauss). Quanto a Heidegger, não tenho o livro aqui, mas poderei dar a referência de um texto escrito entre 1936 e 1938 onde o anti-semitismo é descrito como uma «pura estupidez»: o texto está publicado no vol. 65 das «Obras Completas» [Gesamtausgabe], intitulado Beitraege zur Philosophie (Vom Ereignis). Infelizmente, ainda não há traduções dele. Por fim, a elogiosa referência da Clara aos Caminhos Errantes sobre «o melhor blog de filosofia em Portugal»: a Clara é mesmo simpática e generosa, mas o seu a seu dono. E, sem falsas modéstias nem lisonjas, parece-me que o melhor blog no âmbito dos textos filosóficos se encontra noutro sítio, nomeadamente em algo que tem um pouco mais de azul.