Memórias juvenis
Nunca gostei muito de multidões nem de ajuntamentos. Por isso, mesmo nos tempos em que passei pela organização juvenil do Partido Popular Monárquico, tive sempre alguma aversão a comícios, congressos ou mesmo reuniões alargadas. Em particular, a aproximação do 5 de Outubro era sempre uma desgraça: na Juventude Monárquica, havia sempre alguém que se lembrava de tentar organizar uma espécie de contra-manifestação, em contraste com as festividades oficiais republicanas na Praça do Município. E os argumentos eram sempre irrefutáveis: mesmo que sejamos poucos, sempre seremos mais que os três gatos pingados que lá vão ouvir os discursos. Mas felizmente, que me lembre, sempre se deixou os gatos pingados da Praça do Município em paz. Lá ficavam, numa estranha manifestação pública de solipsismo, a dar vivas à república, a louvar a herança do Partido Democrático e de Afonso Costa, a elencar a sua função educadora, a sua acção reconciliadora e o seu papel de modernidade e de paz. Era todo um mundo, toda uma história que parecia ganhar novas configurações, no entusiasmo artificial de tais discursos. Pela minha parte, numa espécie de provocação interior, punha-me a ler, ao mesmo tempo que os ouvia, textos como os que reproduzo a seguir, em que Fernando Pessoa fazia regressar de imediato, para além dos discursos, a república que de facto existiu.
«O chefe do partido democrático não merece a consideração devida a qualquer vulgar membro da humanidade. Ele colocou-se fora das condições em que se pode ter piedade ou compaixão pelos homens. A sua acção através da sociedade portuguesa tem sido a dum ciclone, devastando, estragando, perturbando tudo, com a diferença, a favor do ciclone, que o ciclone, ao contrário de Costa, não emporcalha e enlameia. Para o responsável máximo do estado de anarquia, de desolação, e de tristeza em que jazem as almas portuguesas, para o sinistro chefe de regimentos de assassinos e de ladrões, não pode haver a compaixão que os combatentes leais merecem, que aos homens vulgares é devida.»
Fernando Pessoa, Páginas de Pensamento Político I (org. António Quadros), Lisboa, Europa América, 1986, p. 81.
«O chefe do partido democrático não merece a consideração devida a qualquer vulgar membro da humanidade. Ele colocou-se fora das condições em que se pode ter piedade ou compaixão pelos homens. A sua acção através da sociedade portuguesa tem sido a dum ciclone, devastando, estragando, perturbando tudo, com a diferença, a favor do ciclone, que o ciclone, ao contrário de Costa, não emporcalha e enlameia. Para o responsável máximo do estado de anarquia, de desolação, e de tristeza em que jazem as almas portuguesas, para o sinistro chefe de regimentos de assassinos e de ladrões, não pode haver a compaixão que os combatentes leais merecem, que aos homens vulgares é devida.»
Fernando Pessoa, Páginas de Pensamento Político I (org. António Quadros), Lisboa, Europa América, 1986, p. 81.
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