Caminhos Errantes

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Vida

Não há conceito mais acidentado na sua história que o conceito de vida. Na antiguidade pagã, a vida era o princípio da unidade do vivente: a alma surge assim como a forma do corpo. Para o cristianismo, a vida é mistério e o sopro de Deus nas criaturas: não é só alma (psyche), mas espírito (pneuma). De mistério, a vida passou a bem protegido: ela é o fundamento de toda a vida moderna, assente no pacto protecção-obediência. De bem, passou a valor. De valor, a direito. E, finalmente, como direito protegido, tutelado, administrado, a vida pode agora ser puro objecto exposto à protecção, à tutela, à administração. É nessa medida que ela se tornou hoje exposição a poderes que, na medida em que se exercem sobre ela, como o seu cuidado e a sua simultânea manipulação, são agora biopoderes. A vida torna-se assim exposição, completando um ciclo em que inteiramente se descristianizou, convertendo-se no contrário do que era: o que está exposto é exactamente o contrário do misterioso.

1 Comments:

  • Num registo problematizador: apesar dessa exposição e aparente transparência biológica, alvo da clarividência da medicina, e das estruturas sociais que dela emergem, e para lá ou aquém da dimensão administrativa a que o Estado de hoje parece tender, existe o silêncio aterrador da morte que, embora tabu (na estrutura social externa), bofeteia na sua crueza qualquer pretensão a uma clarividência da vida. E esta estrutura social interna é uma dimensão onde o Estado como administração não pode imiscuir-se. Desdobra-se na intersubjectividade privada (não necessariamente doméstica ou familiar) de um espaço não propriamente civil, onde sobrevivem todas as questões religiosas, existenciais, relacionais, entre outras. Sofre de um certo individualismo, é certo, mas somente na medida da necessidade de desenvolver uma reflexividade subjectiva e uma plena pessoalidade. Neste sentido, a vida como mistério está protegida do Estado. Este só deve meter-se com a sua sustentação, não com a sua profundidade. Deste modo, o mistério talvez ainda viva em cada um.

    By Blogger Pedro, at 3:36 da tarde  

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