A filosofia no secundário
No ensino secundário, talvez não haja disciplina mais politizada que a filosofia. Apesar das abundantes reformas, os sucessivos governos portugueses mantiveram a sua obrigatoriedade nos últimos anos do ensino secundário, no fundo, apenas por alimentarem a ficção de encontrarem nela uma espécie de substituição cómoda para a “ciência politizada” (já Heidegger, num diferente contexto, protestava contra esta transformação da filosofia em politische Wissenschaft…), colocada imediatamente ao serviço dos cidadãos e da pólis, e dando-lhes, em boa verdade, não propriamente de pensar, mas sobretudo o que pensar.
Nos anos 80, quando estudei no Gil Vicente, em Lisboa, o programa de filosofia do ensino secundário era, com tudo isso, no essencial, bem estruturado. Conduzindo “do mito ao lógos”, desenvolvendo-se numa direcção certamente demasiado linear, o “pensamento filosófico” era apresentado numa perspectiva de progressiva conquista do mundo pela razão, de progressiva racionalização do real. Apesar da sua excessiva unilateralidade, que seria sempre (em qualquer programa do ensino secundário) inevitável, um tal programa tinha duas virtudes inquestionáveis. Em primeiro lugar, abria uma perspectiva panorâmica acerca dos grandes marcos do pensamento filosófico, abordando directamente a obra de pensadores como Platão, Aristóteles, Kant, Hegel ou Nietzsche (o período medieval era certamente o mais injustamente desvalorizado). Em segundo lugar, despertava a noção, hoje tão esquecida, de que a filosofia não é nem algo banal e quotidiano, nem uma mera técnica de raciocínio ou de argumentação, consistindo antes num pensar sobre as “coisas grandes”, sobre aquilo a que os gregos chamavam ta megala, sobre as grandes questões que, para falar kantianamente, não podendo solucionar definitivamente, não podemos também, contudo, afastar das nossas vidas.
Nos anos 90, o programa de filosofia mudou na exacta medida em que mudou, na sociedade portuguesa, o seu entusiasmo por uma história feita de transformações. Tratava-se agora de um programa que reflectisse as inquietações de uma sociedade que sabia já não ir a lado nenhum, mas que, apesar de tudo, se procurava representar como “multicultural”, marcada por uma acelerada “mudanças de costumes” e em confronto com os “novos desafios tecnológicos”. As “coisas grandes” deixaram de interessar, e o ensino da filosofia, nas nossas escolas secundárias, deslocou-se para uma preocupação com o “pluralismo”, os “valores”, os "avanços tecnológicos" e a “educação para a cidadania”. O pensar filosófico no ensino secundário iniciou então um percurso que o tornou indistinto de uma espécie de registo dóxico de ideias vagas, muitas vezes reduzido a simples conversa de café. E a disciplina de filosofia ficou integralmente entregue à seriedade e competência dos professores de filosofia. Assim, em muitos casos, apesar da vagueza do programa e através da sua suficiente indeterminação, os alunos do secundário tomaram - e tomam ainda hoje - contacto com um efectivo ensino da filosofia. Noutros casos, infelizmente, a disciplina de filosofia tornou-se, junto de disciplinas como português ou matemática, uma conversa vaga, inconsistente, irritante e sem rumo, cujo sentido se torna dificilmente compreensível.
É desta situação que resulta hoje a proposta de orientar a leccionação do programa em função de uma tipologia de problemas e argumentos, numa redução da filosofia a mera técnica de etiquetagem, preocupada não com uma efectiva compreensão de conceitos fundamentais, na sua riqueza e especificidade, não com um acesso a um efectivo pensar, mas com o estabelecimento de um método de redução fácil deste pensar a rótulos, a “ismos” e, no fundo, ao conforto ilusório de uma impressão de déjà vu. Surgida como orientação para a leccionação do programa ainda em vigor, uma tal proposta traz ínsita a alteração deste mesmo programa e só se torna possível, no fundo, pelo carácter inconsistente e amorfo do programa que pretende subverter.
Pela minha parte, penso que uma alteração efectiva do programa seria bem-vinda, se correspondesse a uma recuperação de alguma consistência teórica por parte de um programa em larga medida vago e, quase sempre, cientificamente nulo. Contudo, o problema da actual proposta de orientação para a leccionação do programa consiste justamente em que – sob a aparência de uma seriedade teórica alimentada pela referência a autores filosóficos e a textos clássicos da filosofia – a filosofia é aqui submetida a um exercício de redução que, no essencial, bloqueia o acesso àquilo que é pensado e, consequentemente, ao próprio pensar; ou seja, a um exercício que faz exactamente o contrário daquilo que o ensino da filosofia deve fazer. Tal é então, apesar da aparente evolução, uma regressão perigosa.
No actual programa de filosofia, é escandalosamente possível tornar o ensino da filosofia numa mera reflexão inconsistente sobre impressões, experiências e valores (há anos que é urgente reconhecê-lo frontalmente). Mas trata-se de uma possibilidade contornável que responsabiliza, sobretudo, o professor. Na actual proposta de orientação de leccionação do programa, pelo contrário, é não possível, mas inevitável que a filosofia seja confundida com um mero exercício de catalogação ou com uma mera tipologia de argumentos, ou seja, com um mero exercício escolástico. E esta confusão é inaceitável. Felizmente, apesar de algumas tendências da filosofia actual, a filosofia não é – ou, pelo menos, ainda não é – uma mera neo-escolástica.