Caminhos Errantes

quinta-feira, maio 18, 2006

A era do "como se"


Da era do nacionalismo, que acompanhou o movimento democrático e o constitucionalismo liberal no seu nascimento e desenvolvimento, resultou a era das ficções. Os vários nacionalismos tentaram, no século XX, criar uma nova era constitucional, baseada no desaparecimento da dicotomia Estado-sociedade, na ideia de uma homogeneidade, harmonia e solidariedade entre chefes e chefiados, na representação de comunidades orgânicas irredutíveis a sociedades funcionais, na alusão a critérios de justiça que ultrapassavam o mero funcionamento normativo de uma legalidade abstracta. Surgia a partir daí, em meados do século, a ficção política do stato corporativo italiano ou do Volksstaat alemão, assentes respectivamente quer na subsunção da multiplicidade irredutível do povo na universalidade do Estado, quer na subsunção do próprio Estado na "comunidade de povo", na Volksgemeinschaft de um povo homogéneo, imediatamente político e dinânico a partir de um movimento que lhe fosse imanente. Do desmoronamento da ficção nacionalista permaneceu, como herança, a própria ficção. Os Estados que se lhe seguiram mantiveram as suas estruturas essenciais, mas agora animadas por uma retórica liberal que, evocando os primórdios de um constitucionalismo passado, desvela imediatamente a ficção como o seu alicerce fundamental. Isso gera o aspecto paradoxal de uma era política baseada essencialmente na estrutura fictícia de um "como se". Por um lado, dir-se-ia que, numa herança directa dos fascismos, o poder se concentra como nunca: sob a retórica do controlo, da limitação e da fiscalização, a justiça politiza-se, os parlamentos tornam-se num mero aglomerado de mandatários partidários e os governos, assumindo o papel do "legislador", transformam as anteriores "democracias parlamentares" em "democracias governamentais". Por outras palavras: as nossas democracias liberais actuais encontram na Ermächtigungsgesetz alemã de 24 de Março de 1933, na lei pela qual o parlamento alemão delegava no chanceler do Reich a imediata capacidade de ditar leis, a origem última daquilo a que se chama sintomaticamente o seu "regular funcionamento". Por outro, dir-se-ia que, sob os ímpetos de uma administração imparável e incontrolável, o poder já não é humanamente exercido, mas tudo se tem de passar como se fosse: o governo não decide, mas cumpre o inevitável como se decidisse; as oposições não pensam, nem debatem, nem criticam, mas agem como se o fizessem ao cumprir mecanicamente a função de se opor. E os homens entregam-se a processos que, no seu desenvolvimento mecânico, determinam a sua vida como se estes fossem produtos da sua escolha ou resultados da sua deliberação.