Caminhos Errantes

sexta-feira, março 10, 2006

Motorização


Não se resiste ao próprio deus que os próprios filhos devora sempre... É esta frase de Ricardo Reis que mais perfeitamente marca a era que nos determina. As instituições, classicamente entendidas, são construções artificiais destinadas a cristalizações que, sempre frustradas, têm o efeito benéfico de produzir não propriamente uma paragem, mas uma desaceleração do tempo. Elas produzem o efeito que se retrata na figura paulina do katechon. Assim, num tempo em constante aceleração, elas abrandam o movimento, fundam um ambiente humano e respirável, possibilitam o inevitavelmente lento enraizamento dos "bons hábitos" a que os gregos chamaram aretai (excelências, virtudes), instalam confiança nas relações, submetem o automatismo à crítica, a decisão à deliberação, o arbítrio à racionalidade. Neste sentido, os vínculos institucionais estabelecem uma resistência contra a marcha devoradora de Cronos. E é esta resistência que hoje parece ter sido devorada por este deus poderoso. Sem resistência que se lhe depare, um tal deus transformou-se numa simples máquina de trituração, num puro e simples motor que constantemente se acelera. E é desta motorização crescente que tudo se parece hoje tornar servo. Ao contrário do seu sentido originário, as instituições surgem agora como figuras voláteis, configuradas segundo arranjos momentâneos. As universidades confundem ciência com técnica, ideias vagas e associações genéricas. A autoridade e a representação sucumbe sob a voracidade de uma "opinião pública" determinada já não por leituras matinais, mas pelas impressões imediatas de imagens que passam em flash. O governo torna-se no autêntico poder legislativo, incutindo na legislação um puro cunho executivo. Longe de se constituirem como decisões deliberadas, as leis tornam-se medidas tomadas apressadamente para serem corrigidas amanhã. O excepcional e o normal perdem os contornos que os separavam. Desaparece, não a excepção, mas a diferenciação entre esta e a normalidade. Instala-se um estado normal de excepção. E tudo se mobiliza num enorme dínamo em que qualquer diferença, qualquer contorno se esvai.