Presidenciais
As eleições presidenciais que se aproximam, por entre a Gedankenlosigkeit que tornará todo o processo um longo bocejo, previsível e arrastado, apenas serão dignas de nota por duas circunstâncias. A primeira, infelizmente já habitual, consiste no absoluto escândalo com que passa incólume a desigualdade de tratamento entre candidatos. Enquanto uns se entretêm a contar e comparar minutos de exposição televisiva, é sempre renovadamente escandaloso - não pela estranheza, mas pelo cinismo - que, sem que haja sobre isso qualquer reparo eficaz, se promovam debates televisivos e sondagens sobre candidatos partidariamente vinculados, ao mesmo tempo que se apregoa o "carácter pessoal" da eleição e se desencoraja burocraticamente o concurso de candidatos livres de vínculos e de solidariedades partidárias. Num tal contexto, qualquer informação sobre as candidaturas torna-se já imediatamente propaganda. Mas a segunda das circunstâncias que marcarão estas eleições é mais interessante: ela consiste na discussão acerca do "poder moderador" do Presidente, assim como da medida em que o Chefe do Estado deve exercer a sua influência na acção governativa (hoje praticamente administrativa) do executivo. Neste domínio, Mário Soares representa paradoxalmente a tese monárquica - ou pseudo-monárquica - do roi qui règne, mais ne gouverne pas. Atesta-o não só as suas observações sobre o assunto, mas sobretudo a necessária coerência com o exercício dos seus mandatos presidenciais, preenchidos por viagens, comentários, sorrisos, sestas, piadas e apertos de mão, num desempenho ao nível do popular slogan "Soares é fixe". E, neste mesmo sentido, a mais que provável vitória de Cavaco Silva poderia ser, se a personalidade fosse outra, o reencontro da Presidência com a sua verdadeira função, hoje manifestamente usurpada pelos partidos. Numa estrutura assente essencialmente na promoção artificial do conflito, e em que um sistema "cacocrático"* ocupa todo o Estado reduzindo-o a um mero aparelho, a primeira derrota presidencial da esquerda poderia significar a intervenção de uma instância política cujo poder excepcional não só pode, mas deve intervir não propriamente para moderar, mas para corrigir o manifesto assalto do Estado às mãos dos abusos e dos interesses. Pena é que uma tal oportunidade pareça estar já, à partida, desperdiçada.
* Significando o adjectivo grego kakos algo "mau", o contrário de "bom" (aristos), o sistema político da República Portuguesa, como demonstra a mais elementar verificação empírica, parece constituir-se hoje como um rigoroso oposto de uma "aristocracia", ou seja, como uma cacocracia.
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