Caminhos Errantes

sábado, março 04, 2006

O novo declínio do Ocidente


Livros como Of Paradise and Power de Kagan e Who are we? de Huntington mostram, no fundo, o reconhecimento cada vez mais explícito de que a categoria geopolítica mais pacífica dos últimos cinquenta anos - a categoria de Ocidente - começa a ser hoje progressivamente problemática. O Ocidente, entendido como um "hemisfério ocidental" que une numa unidade solidária as duas margens no Atlântico, é, ao contrário do que se poderia inicialmente pensar, uma representação recente. A América, sob a preponderância hegemónica dos Estados Unidos, construiu-se como entidade política sobretudo a partir de 1823, com o enunciado da doutrina Monroe. E construiu-se como um espaço fechado não apenas diante de uma Europa envelhecida, à qual era negado qualquer direito de intromissão no "novo mundo", mas sobretudo alicerçada na afirmação republicana e democrática da auto-determinação dos povos contra a Europa da Santa Aliança, fundada num princípio político antagónico de legitimidade dinástica. D0 mesmo modo, os Estados europeus nascidos no século XX - a Rússia Soviética, o stato totalitario italiano e o Führerstaat alemão - surgem ou consolidam-se como reacções contra a Sociedade das Nações, e contra o estatuto que nela os Estados Unidos adquiriam: o estatuto de uma potência que, permanecendo fora desta Sociedade e assumindo-se como condutora de um espaço de influência continental, poderia intervir ilimitadamente a uma escala planetária, através da evocação da justiça e da humanidade pelos Estados americanos representados nesta mesma Sociedade. Os conceitos de "hegemonia" de Heinrich Triepel, a ideia de um "grande espaço" völkisch de Reinhard Höhn ou a reivindicação para o Reich alemão da herança da doutrina Monroe americana, por Carl Schmitt, são testemunhos de que a Segunda Guerra Mundial é compreendida, em larga medida, como uma guerra pela constituição da Europa como um grande espaço, fechado a um "imperialismo" ou a um "pan-intervencionismo" americano. Só a partir do desfecho desta guerra, e do trauma gerado pelas suas consequências e pelo terror da era atómica, a realidade frágil de uma solidariedade atlântica adquire o estatuto de uma entidade perene e natural. E é este estatuto de uma eternidade demasiado apressada que hoje, tanto às mãos violentas da pura acção política como à luz de tranquilas análises teóricas, se parece começar a desfazer. O Ocidente parece ser hoje uma entidade política não por si mesmo, não em virtude de uma consistência intrínseca que se torna cada vez mais problemática, mas apenas porque os outros, os "terroristas", os outrora "incivilizados", "primitivos" ou "bárbaros" são incapazes de nos distinguir. Dir-se-ia que os inimigos da realidade política moribunda que é o "hemisfério ocidental" são assim cada vez mais, paradoxalmente, a força que detém a sua decomposição e a prende à vida. O inimigo converte-se aqui, segundo o dito schmittiano, no próprio irmão. Der Feind ist unsere eigene Frage als Gestalt...