Caminhos Errantes

sábado, agosto 06, 2005

Hiroshima


Há exactamente sessenta anos tombava sobre Hiroshima a primeira bomba atómica. Com ela, tomou definitivamente forma a era política em que vivemos. O nazismo, com a sua zoologia política, criara anos antes uma nova dimensão do campo de concentração, inventado e aplicado antes dele pelos ingleses: a total redução do homem à “vida nua” e a transformação do poder numa potência (Gewalt) que, sem subtilezas nem distinções, sem reservas de intimidade, incide sobre essa vida que se lhe encontra exposta. No fundo, o que a bomba atómica fez – e é justamente isso que caracteriza a “era atómica” – foi transformar o campo fechado, concentrado, dos nazis num campo aberto. Não foi só o alargar do espaço em que a violência se exerce. Foi antes a lembrança definitiva de que nenhum espaço é fechado – como hoje o terrorismo se encarrega de lembrar. Foi a atestação de que nenhum corpo é imune. Foi o testemunho de que nenhuma alma é inacessível ou inviolável no seu pensamento e vontade – o discurso de Truman ao classificar o lançamento da bomba como o bombardeamento de uma “base militar” é aqui um bom exemplo desta total exposição do pensamento a forças cujo poder não simplesmente indistingue verdade e mentira, fazendo esta passar por aquela, mas está simplesmente para além da sua distinção, pondo agora não só o pensamento, mas a coisa desse mesmo pensamento. A era atómica é assim a era da pós-intimidade; e, nessa medida, ela é a era daquilo a que se poderia chamar um pós-pensamento. A rejeição contemporânea - Boeder chama-lhe submoderna - do "logocentrismo" encontra aqui o campo para o seu crescimento. Na sua determinação de todo o poder e autoridade como injustiça, este pós-pensamento espalha-se com a cada vez maior abertura de um campo aberto onde um poder total - que já não apenas se distingue do poder absoluto, mas se rebela contra ele - se solta e cresce numa crescente mobilização. Que uma tal era coincida com o triunfo militar e retórico de sistemas políticos democráticos e liberais é apenas uma (aliás não rara) ironia da história.