Caminhos Errantes

segunda-feira, abril 04, 2005

A morte de João Paulo II

O Papa João Paulo II morreu hoje, às 20h37. Não me interessa hoje, ou pelo menos agora, o carácter controverso e admirável do pontificado: o chamado conservadorismo e autoritarismo teológico, por um lado; a coragem de intervir no mundo e, mais do que todos os homens após a Segunda Guerra Mundial, mudar o saeculum. Apenas me ocorre o seu testemunho de vida enquanto moribundo. Numa era em que a morte é não apenas esquecida, mas recalcada e mascarada, em que tudo convida a viver sem pensar nela, em que os mortos são adornados com cosméticos, o Papa pôs a sua vida - e a vida humana, na sua essencial condição - diante dos homens como um testemunho, um "martírio". Vivemos hoje uma era em que a solidão que à morte é intrínseca é intensificada. Morrer é hoje já não apenas um momento solitário: o momento da maior solidão, o momento da nossa vida que ninguém pode viver por nós. Esse acto, essa passagem, esse evento (melhor: esse ad-vento), ao mesmo tempo tão próximo e tão distante, é hoje, mais do que algo solitário, qualquer coisa escondida, intimizada, privatizada. Assim, a morte torna-se, para nosso consolo, invisível: algo banal, algo anunciado nas notícias más (que as há sempre), algo revelado nas estatísicas; mas também algo sempre escondido na generalidade e neutralidade dos casos de morte, algo permanentemente negado no movimento, esquecido sob o barulho ensurdecedor das nossas conversas apaixonadas, atropelado pela frenética vitalidade das nossas vidas. Como dizia Heidegger, ninguém morre, mas morre-"se". Sei que vou morrer e todos os homens o sabem. Mas a minha morte, a morte de alguém, é hoje vivida como qualquer coisa de íntimo e privado, que tem de ser, a cada instante, escondido. Basta pensar nos idosos postos em quartos escondidos para morrer; como se morrer fosse uma vergonha, mostrando os limites de uma máquina que a ciência já não consegue pôr a funcionar com eficácia; como se morrer fosse tornar-se um dejecto, que tem de ser escoado com o maior recato e privacidade. Não somos eternos e a nossa vida aponta para a eternidade - a vida do Papa, na sua morte, foi o martírio, o testemunho dessa simples verdade.
02.03.05