Caminhos Errantes

sábado, fevereiro 04, 2006

O que Bolonha poderia ter sido



Ao contrário de alguns colegas meus na universidade, penso que todo o processo da reforma de Bolonha poderia ter sido, para nós, se houvesse um minimum de coragem política por parte de quem deveria tê-la, uma enorme oportunidade. Assim, na falta da dita, e como é habitual neste tipo de reformas, a oportunidade converter-se-á muito provavelmente em catástrofe, com o governo a preparar-se já para evocar, para a justificar, essa ficção que dá pelo nome de autonomia universitária.

Olhando para os nossos cursos de filosofia, ou de letras e ciências sociais e humanas em geral, a sua estruturação em dois ciclos - um de estudos graduados e outro de pós-graduados - com a duração respectivamente de três e dois anos, teria certamente várias vantagens. A internacionalização, a mobilidade dos estudantes, uma investigação mais autónoma fora do âmbito lectivo, uma melhor e mais estreita organização do curso por etapas estruturadas: tudo isso se poderia desenvolver a partir desta reforma. E as desvantagens pareceriam, à partida, mínimas. No fundo, no caso das letras, apesar das diferenças terminológicas, tratar-se-ia de um regresso ao tempo em que os cursos universitários eram mais demorados, mais sérios e mais exigentes, durando cinco anos e exigindo, no final da licenciatura, como ainda hoje em países mais sérios como a Itália, uma pequena "tese de licenciatura". Que, terminando os três anos do ciclo de estudos graduados, os estudantes se chamassem "licenciados" e pudessem ser apelidados de "Dr", tal pareceria, à partida, perfeitamente inócuo. E que, na conclusão dos cinco anos de estudos, após a apresentação de uma pequena tese, alguém ostentasse o título de "mestre" em vez de "licenciado", tal seria também, apesar de um pouco ridículo para as nossas tradições académicas, relativamente suportável.

Acontece que tudo isto seria assim, interessante e sugestivo, se o nosso governo não visse em todo o processo de Bolonha senão sobretudo a oportunidade para ter como um luxo - e consequentemente recusar financiamento público - aos estudos universitários pós-graduados. Tal quer dizer que, ao contrário de os dois ciclos de estudos serem integrados num processo independente, mas contínuo, de formação, é de prever que o corte entre estes seja, em Portugal, elevadíssimo. E o desastre já se anuncia aqui: imaginemos uma maré de "licenciados" em filosofia, em história ou em clássicas com apenas três anos de formação académica e sem qualquer continuidade de estudos. Tratar-se-ia (ou tratar-se-á) pura e simplesmente de promover, com consciência e intenção, uma fraude grave, em que se atribui habilitações e se reconhece qualificações a quem manifestamente não as tem nem pode ter.

Assim, confiando numa réstia de sensatez por parte de quem decide e contando com que efectivamente - no final - possa decidir, é de prever, com alguma pena, que, colocadas perante a opção de organizarem o seu tempo de estudos entre o modelo de "3+2" e o modelo de "4+1", as instâncias decisoras, nas faculdades em que seja o caso, optem por este em detrimento daquele, ou seja, que preservem a actual estrutura dos cursos em prejuízo de um modelo que, havendo condições, poderia ser a expressão de uma sua alteração qualitativa. Bolonha será assim, para nós, uma das típicas reformas políticas da República Portuguesa: uma grande e profunda discussão acerca de "reformas estruturais" para que tudo, no essencial, se mantenha exactamente ou na mesma, ou pior.

Um choque não tecnológico

Ontem, em Lisboa, durante a conversa com um colega, leitor de alemão noutra universidade, recebi uma notícia que me conseguiu espantar e irritar (caso raro, pois creio ter algum sucesso no cultivo de uma certa Gelassenheit que me faz pouco vulnerável a esse tipo de afectos). A notícia era a da diminuição abrupta do número de alunos que, no nosso ensino secundário, aprendem alemão. Nos últimos cinco anos, de 17000 alunos que faziam a disciplina passamos para 800, sendo que o francês, naturalmente com mais alunos, sofre uma quebra de análoga dimensão. E essa informação deixou-me irritado porque me trouxe imediatamente à memória a imagem recente do nosso Primeiro Ministro - a quem o Sr. Gates foi dar uma aula sobre "novas tecnologias" - anunciando que todos os meninos portugueses (e muito bem) já aprendiam inglês desde a mais tenra infância e tinham escolas ligadas por internet de banda larga. Conjugando a figura do engenheiro que nos dirige com os lamentos do meu colega alemão, recordei-me depois da única vez em que realmente senti vergonha de ser português e desejei não o ser: o dia em que, há uns anos, uma amiga alemã me dizia ter estudado, nos treze anos de ensino pré-universitário, oito anos de latim. Essa recordação estragou-me definitivamente o dia.
Sempre que oiço aquelas longas dissertações, profundas e problematizantes, acerca do estado do ensino em Portugal, ou acerca do problema dos alunos portugueses com a matemática, ou acerca da indiferença generalizada de grandes massas da população estudantil, tenho sempre a sensação de que o problema é tanto mais simples quanto mais o complicam essas dedicadas reflexões. Em Portugal, no geral, não há - e o grave é que há cada vez menos - hábitos de trabalho e de estudo. É esta situação, promovida aliás socialmente por um ambiente social e político que vê alguém que trabalhe e fale de mérito como um parvo ou um ingénuo, que está na origem e constitui a essência de tudo o resto. O resto, claro, é a nossa situação actual, vista sob a perspectiva não apenas do seu estado momentâneo, mas do seu processo de crescente degradação. Diante dela, nos sectores ligados ao ensino, surgem hoje sobretudo ficções pedagógicas destinadas, dir-se-ia, a tentar contornar o incontornável: a ficção de tentar aprender como se aprender não exigisse trabalho; a ficção de tentar estudar como se estudar não exigisse tempo, esforço e dedicação; a ficção de tentar formar civicamente homens de carácter (aquilo a que se chama hoje "educação cívica) como se tal não exigisse reconhecimento e autoridade; a ficção de tentar criar uma autonomia intelectual como se esta fosse o mero resultado de experiências lúdicas e animações culturais.
Apesar de medidas correctas como a mencionada internet e o mencionado inglês, qualquer professor sabe hoje, de um modo geral e sem esquecer as excepções sempre assinaláveis, que o problema fundamental do ensino consiste no facto de as escolas terem entrado num processo, que parece imparável, de puerilização dos alunos, desautorização dos professores e irresponsabilização geral. Há tempos, um colega com muita experiência no ensino secundário, a quem eu fazia a apologia do programa de filosofia dos anos 80, comparando-o com o actual, atirou-me o argumento irrefutável: hoje, são raros os alunos que, com 15 ou 16 anos, conseguiriam responder às exigências intelectuais de um tal programa. Por outro lado, e como epifenómeno deste processo de "puerilização", os professores transformam-se cada vez mais numa espécie de entertainers, misto de terapeutas ocupacionais, gestores de eventos lúdicos, funcionários administrativos e animadores culturais. E a sua própria formação científica é também, desde há mais de duas gerações, reflexo dessa transformação. Temos hoje um número imenso de professores cuja formação inicial foi deliberadamente sacrificada pela ocupação crescente do seu tempo de estudo por cadeiras especificamente pedagógicas que, na sua grande maioria, não são senão, como todos reconhecem em surdina, uma espécie de passatempo inútil. E o manifesto exagero do seu peso nos curricula pode já hoje ser comprovado não apenas na inevitável inutilidade de grande parte delas para um bom desempenho dos professores, mas sobretudo nos seus efeitos na progressiva redução da sua formação científica. Tal desperta a sensação de que a formação de professores é ainda hoje pensada não para contrariar e resistir a um processo de degradação acelerada, mas para o acompanhar ou até intensificar: a Wechselwirkung, a acção recíproca entre os dois processos é, pelo menos, absolutamente patente.