Caminhos Errantes

terça-feira, novembro 04, 2008

Joaquim de Carvalho


Participei há dias, na Figueira da Foz, de uma tertúlia destinada a assinalar os cinquenta anos da morte de Joaquim de Carvalho. Foi ocasião para reler alguns textos, entre os quais esta Reflexão sobre a Universidade, redigida pelo filósofo de Coimbra durante a década de 30. A gritante actualidade destas páginas atinge precisamente o coração do "estado a que chegámos" hoje na academia:


«A actual organização universitária, que data fundamentalmente de 1918, é duma voracidade insaciável. Ela devora o tempo, a coisa mais preciosa da escolaridade de mestres e estudantes. Ter tempo livre, desperdiçá-lo em curiosidades problemáticas, invertê-lo em leituras fatigantes e praticamente inúteis, aplicá-lo na indagação e na porfia de ideias e de factos, são condições vitais do exercício do magistério e da formação do homem, que jaz potencialmente no estudante.

Sempre que inicia a lição, o professor arrisca o seu crédito moral. Uma lição mal feita, a escamoteação das dificuldades, a acrobacia de palavras e a versatilidade dos juízos subvertem numa hora, e para sempre, o crédito junto dos auditores. Por isso, o prestígio dos professores é como o respeito pelo pudor das mulheres: uma vez perdido não se recupera.

Para propiciar o volátil ambiente moral da cátedra a lei concede aos professores universitários a liberdade de poderem faltar algumas vezes sem justificação, e tal liberdade é o reconhecimento público da necessidade do tempo e da fragilidade do magistério. Simplesmente, a organização actual, repleta de cadeiras e de cursos e servida por um pequeno quadro de professores, destrói de facto o que reconhece em teoria.

Dizem-se e explicam-se em cinco minutos os resultados de muitas horas laboriosas, e a verdade triste e incontestável é que o professor, que só quer ser professor, não usufrui hoje as longas horas disponíveis.

Percorra-se com espírito equânime o plano de estudos de algumas, senão de todas as Faculdades, e a peçonhenta verdade da carência de tempo livre, para mestres e estudantes, surgirá com profunda evidência. Atirado de uma cadeira para outra cadeira, de um curso para outro curso, das aulas teóricas para as aulas práticas, o professor é inexoravelmente compelido à burocratização do magistério, ao ensino fácil e à repetição - coisas terríveis para mestres e alunos.»


Joaquim de Carvalho, Obra Completa, Lisboa, Gulbenkian, 1989, vol. VI, p. 292.

sábado, outubro 04, 2008

Pluralismo


Segundo Hannah Arendt, mais do que a presença e a dimensão reduzida que esta presença requeria, a vida política clássica assentava na pluralidade determinante do mundo político. Uma tal pluralidade, porém, não o determinava como o local da desigualdade. Esta desigualdade, pelo contrário, teria lugar no mundo familiar infra-político, no mundo da casa (oikos), regido pela oikonomia, no qual o senhor, o despotês, guiava a unidade constituída pela sua mulher, os seus filhos e os seus escravos. No mundo público da pólis, pelo contrário, o despotês tornava-se politês, um cidadão igual aos demais cidadãos, habilitado, em virtude dessa igualdade, a discutir, persuadir, deliberar e agir num universo plural de opiniões e argumentos. Dir-se-ia então que, neste mundo público assim constituído, era a própria pluralidade que sustentava a igualdade política dos cidadãos. Parece que hoje, nas nossas democracias liberais mediáticas, esta relação entre unidade e pluralidade aparece precisa e rigorosamente invertida. Em lugar da unidade política que o mundo público antigo deveria ostentar, tudo hoje deve parecer diverso, aberto e plural. Contudo, do mesmo modo que, outrora, era uma essencial pluralidade que estava na base da unidade política do mundo público, a aparente pluralidade do nosso mundo público, evocada tão abundantemente pelo poder mediático de partidos, jornais, televisões e agências de comunicação, não pode deixar de ter na sua base, no seu fundamento mesmo, uma crescente uniformização. E esta relação é, aliás, de uma proporcionalidade directa: o poder mediático apresenta-se e aparece tanto mais plural e irreverente quanto mais uniforme e domesticado é. Aquilo que hoje é publicitado como diferente não é senão, afinal, uma espécie de repetição do mesmo, indefinidamente glosada.

sexta-feira, abril 18, 2008

O suicídio


O problema fundamental da universidade portuguesa é o de a sua realidade superar qualquer ficção possível. A criação de um curso de mestrado em gestão e manutenção de campos de golfe (sic) é um exemplo eloquentíssimo desta criatividade incontinente.

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segunda-feira, setembro 18, 2006

Intermezzo


Foi Heidegger quem disse, a propósito da sua abertura ao "outro início" da história, a um anderer Anfang irredutível a qualquer Bisherige, que viemos tarde de mais para os deuses, mas cedo demais para o ser. Abre-se assim um intermezzo, um período de tempo sem lugar e, portanto, neste sentido específico, u-tópico. Também politicamente o nosso tempo é o de um intermezzo, marcado por dois processos convergentes. Por um lado, o político, arrancado ao seu monopólio estatal, autonomiza-se, abrindo assim caminho à possibilidade da sua vigência cada vez mais pura. Por outro lado, a vigência cada vez mais pura do político, a sua efectivação como vigência de um "puro poder", exige, como condição da sua eficácia, a sua invisibilidade, a qual se torna manifesta na sua presença como "despolitização", num mundo liberal que se interpreta como ultrapassagem progressiva e definitiva da violência. Num tal tempo de intermezzo, vivemos também na u-topia de um período de tempo carente de espaço, que se empurra sempre quer para aquém, quer para além de si. Viemos - dir-se-ia - tarde demais para o Estado, mas cedo demais para a ordem.

quarta-feira, maio 24, 2006

A "pedrada no charco"


Pelo que se ouve dizer, do recente livro de Manuel Maria Carrilho - que, ao que parece como toda a gente, eu também não li, nem perderei tempo a ler - seria possível afirmar, como uma vez alguém num exame, que a exposição contém coisas boas e originais, sendo de lamentar apenas que as originais não sejam boas nem as boas originais. As originais consistem, ao que parece, numa tentativa de lançar uma "pedrada no charco", fruto de um ressentimento a cuja manifestação pública Portugal - um país em que tudo converge para evitar a emergência de tudo quanto não pertença à "vida habitual" - não está habituado. Mas, apesar de originais, as razões para o protesto não são boas. Carrilho não está preocupado por vivermos num país fechado; num país onde a opinião efectivamente divergente ou simplesmente diferenciada é punida e silenciada debaixo da pluralidade com que se apresentam várias configurações do "mesmo", por entre referências repetidas à ficção de uma "abertura" inexistente; ou num país onde o governo e as oposições estão entregues a uma vasta classe oligárquica em larga medida interesseira, sem hábitos de trabalho nem de pensamento. A sua preocupação é apenas a de que aquilo a que o anterior presidente do meu Sporting chamaria sibilinamente o "sistema" o não terá deixado, desta vez, cumprir as suas aspirações a tornar-se numa espécie de Massimo Cacciari português. Por outro lado, ele tem, como é óbvio e todos sabem, todas as razões para protestar, tendo em conta o "tratamento mediático" de que foi alvo. Só que aqui, apesar de bom, nada do que se possa dizer é novo. É certamente sempre escandaloso observar o modo como alguns jornalistas servem interesses, partidos e amizades, denegrindo pessoas ou instituições, ao evocar, para isso, a "autonomia de uma informação livre" e o seu direito à "determinação de critérios editoriais próprios". Particularmente, em Portugal, é escandaloso deparar-se com a ignorância patente de muitos jornalistas, assente, muitas vezes, menos nas deficiências de não saber que na soberba de não querer saber. Mas a manipulação profissionalizada, a ligação íntima entre os "interesses", "partidos" e "media", a especialização cada vez maior na criação de uma "opinião pública" homogénea, a produção desta opinião sob a ficção de a apresentar como se esta fosse a opinião genuína e livre dos "cidadãos", tudo isso está estudado nas sociedades ocidentais desde os anos 20. Hoje, as sociedades liberais surgidas dos escombros da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria aparecem marcadas pela impossibilidade de, ao limite, distinguir informação e propaganda. Esta é uma das determinações fundamentais para as poder compreender na sua realidade mais íntima e no seu significado mais profundo. Mas, como disse, não me parece que seja esta impossibilidade geral que atormenta a existência do nosso ex-futuro Cacciari.

domingo, maio 21, 2006

fragilidades

Uma das circunstâncias onde mais imediatamente se vê todas as fragilidades humanas - todos os limites do seu entendimento e todas as fraquezas do seu carácter - é a absoluta impotência de qualquer estudo sério e e demorado perante a força e o poder de uma caricatura. Ocorreu-me isto em conversa com um amigo brasileiro, a propósito da figura de D. João VI.

quinta-feira, maio 18, 2006

A era do "como se"


Da era do nacionalismo, que acompanhou o movimento democrático e o constitucionalismo liberal no seu nascimento e desenvolvimento, resultou a era das ficções. Os vários nacionalismos tentaram, no século XX, criar uma nova era constitucional, baseada no desaparecimento da dicotomia Estado-sociedade, na ideia de uma homogeneidade, harmonia e solidariedade entre chefes e chefiados, na representação de comunidades orgânicas irredutíveis a sociedades funcionais, na alusão a critérios de justiça que ultrapassavam o mero funcionamento normativo de uma legalidade abstracta. Surgia a partir daí, em meados do século, a ficção política do stato corporativo italiano ou do Volksstaat alemão, assentes respectivamente quer na subsunção da multiplicidade irredutível do povo na universalidade do Estado, quer na subsunção do próprio Estado na "comunidade de povo", na Volksgemeinschaft de um povo homogéneo, imediatamente político e dinânico a partir de um movimento que lhe fosse imanente. Do desmoronamento da ficção nacionalista permaneceu, como herança, a própria ficção. Os Estados que se lhe seguiram mantiveram as suas estruturas essenciais, mas agora animadas por uma retórica liberal que, evocando os primórdios de um constitucionalismo passado, desvela imediatamente a ficção como o seu alicerce fundamental. Isso gera o aspecto paradoxal de uma era política baseada essencialmente na estrutura fictícia de um "como se". Por um lado, dir-se-ia que, numa herança directa dos fascismos, o poder se concentra como nunca: sob a retórica do controlo, da limitação e da fiscalização, a justiça politiza-se, os parlamentos tornam-se num mero aglomerado de mandatários partidários e os governos, assumindo o papel do "legislador", transformam as anteriores "democracias parlamentares" em "democracias governamentais". Por outras palavras: as nossas democracias liberais actuais encontram na Ermächtigungsgesetz alemã de 24 de Março de 1933, na lei pela qual o parlamento alemão delegava no chanceler do Reich a imediata capacidade de ditar leis, a origem última daquilo a que se chama sintomaticamente o seu "regular funcionamento". Por outro, dir-se-ia que, sob os ímpetos de uma administração imparável e incontrolável, o poder já não é humanamente exercido, mas tudo se tem de passar como se fosse: o governo não decide, mas cumpre o inevitável como se decidisse; as oposições não pensam, nem debatem, nem criticam, mas agem como se o fizessem ao cumprir mecanicamente a função de se opor. E os homens entregam-se a processos que, no seu desenvolvimento mecânico, determinam a sua vida como se estes fossem produtos da sua escolha ou resultados da sua deliberação.