Democracia e Demagogia
Há umas semanas - foi, creio, no dia 11 de Maio - assisti a um "Café com Filosofia", organizado pela Associação de Professores de Filosofia, na Galeria de Santa Clara, na outra margem do Mondego. Foi uma excelente conversa, com Vital Moreira, a propósito de um tema cuja facilidade é enganadora: democracia ou demagogia. Fiquei surpreendido por duas coisas. Primeiro, pelo meu acordo com quase tudo o que disse o orador: o carácter inevitavelmente demagógico dos processos plebiscitários e a necessidade de evitar, nas nossas condições actuais, uma queda nesses mesmos processos, a partir de um incremento da legitimidade referendária. É, efectivamente, patente a actual tentação de evocar a vontade e a opinião do "povo anónimo", do povo como massa exposta abertamente às maiores propagandas e manipulações, transformando assim os seus ímpetos repentinos, as suas depressões ou os seus entusiasmos momentâneos num critério de legitimidade ou numa espécie de tribunal para a avaliação do que é justo e correcto. Como dizia Johannes Popitz, a maior ameaça para a democracia pode vir do próprio povo.
Mas, em segundo lugar, surpreendeu-me também aquele que é, a meu ver, o carácter voluntarioso com que Vital Moreira se agarra, como alternativa, a uma contraposição entre a demagogia dos processos referendários e uma democracia representativa, assente em instituições e garantias constitucionais fortes, em discussões parlamentares racionais e em partidos políticos dedicados ao interesse público. Acontece que hoje, ao contrário do que se passava nas origens novecentescas das nossas democracias liberais, nem as instituições são fortes, nem o parlamento é racional, nem os partidos são forças anti-demagógicas. Pelo contrário.
Por um lado, a partir de uma concepção puramente normativista do direito, a lei tornou-se entre nós na mais pura e simples vontade do legislador. E como o legislador pode ser - e, em Portugal, efectivamente é - inteiramente dominado por dois partidos aparentemente antagónicos, mas que são, no essencial, o mesmo, podendo alterar a constituição por simples acordo entre si sempre que o seu interesse particular o exija, tal tem como resultado que a normalidade constitucional se indistinga progressivamente de um estado de excepção determinado pelos partidos que, dominando 2/3 do parlamento, se sucedem rotativamente no governo e na oposição.
Por outro lado, o parlamento há muito que deixou de ser uma sede aberta a uma efectiva discussão, onde cruzam efectivamente argumentos homens razoáveis e educados, sinceramente dispostos a persuadir ou a serem persuadidos. O parlamento é hoje reconhecidamente apenas o lugar onde comissários partidários apresentam uma visão parcial e unilateral que procura não acolher e pensar a argumentação contrária, mas simplesmente forjar - se necessário com as mais óbvias falácias - a imagem mediática da sua derrota.
Por fim, os partidos são não barreiras contra a demagogia, mas certamente um - embora não o único - dos seus lugares privilegiados. A transformação dos partidos em centros de espectáculo e máquinas de propaganda, as relações da maior intimidade com "orgãos de informação" que se transformam em "orgãos de mobilização e manipulação", a sua sustentação de uma sociedade cujo espaço público cada vez mais se constitui como uma sucessão vertiginosa de imagens que se sucedem na televisão, a subordinação das políticas à previsão da popularidade e às exigências de um calendário eleitoral, os interesses particulares que se lhe encontram cada vez mais associados, a sua ocupação crescente por um conjunto de pessoas que não tem qualquer conhecimento do significado do mérito e do trabalho - tudo isso dá testemunho de que os partidos são hoje menos os guardiães da democracia, contra as tentações de demagogia plebiscitária, do que os protagonistas de uma democracia que se poderia diferenciar especificamente pela sua qualidade de "democracia demagógica".
Quando Vital Moreira me disse que a demagogia era, na democracia, comparável a uma constipação, eu objectei-lhe que esta era antes uma doença crónica. Ele respondeu-me, com graça, que se poderia viver bem com doenças crónicas, desde que se regulasse a sua intensidade. A imagem parece-me feliz. Mas parece-me também que esta doença crónica da democracia, a demagogia, não pode escapar hoje à imagem de uma doença galopante e degenerativa. Não querer vê-lo pode ser cómodo. Mas não é certamente o mais sensato.
2 Comments:
Caro Dr. Alexandre Sá - comentando o seu interessante blog, que subscrevo na íntegra - lembrei-me de associar esta pequena reflexão que talvez possa valorizar o tecido conjuntivo da reflexão. A democracia está em perigo, e estes partem do seio seio. É triste, mas é assim. Este texto já foi publicado no meu blogue: http://www.macroscopio.blogspot.com
A Crise da Política
Com um défice sul-americano de 7%, Portugal parece um criador de mitos tropical. Um fazedor de maus milagres para, no final, concluir, como F. Pessoa: Não sou nada. Sou uma ficção. Depois, para compor o ramalhete do mito, o governador do Banco de Portugal (V. Constâncio), montado num BMW série 7 (de 20 mil cts) anuncia o fio da novela e, talvez, valorize a sugestão do “Pai”-Soares, de fazer cair as promessas eleitorais do PS e agir em função da “socorrência” das finanças públicas.
Contudo, o problema está na economia real, identificado com uma crise de sustentabilidade e de atractividade, que implica a periferização de Portugal no sistema. Sem a possibilidade de atrair recursos, máxime capitais, a crise de viabilidade (endividamento) fica sem solução à vista nesta fase de desenvolvimento, precipitando a dinâmica da recessão que, articulada com aquelas crises, conduzirá a uma regressão do nível de desenvolvimento: a sociedade empobrece, as condições de governabilidade deterioram-se e a redução do ritmo de crescimento aumenta a complexidade, o risco e a incerteza dos futuros equilíbrios sociais.
Daí nasce a crise da política, diversa da crise política que tolhe Portugal. Vejamos: geralmente as crises políticas normais surgem na sequência da formação e composição do poder, resolvidas por eleições ou por recurso à renegociação de alianças. A crise da política, ao invés, está associada à indeterminação estratégica ou da orientação global da sociedade. Ou seja, Portugal, mercê de inúmeros factores (partidocracia, debilidade do escol político) padece dum rumo, duma ideia sólida para o futuro. E quando isto sucede, a sociedade fica cega, congelada numa prega do tempo, cristalizada a uma imagem do passado que impede a formação duma imagem de futuro que não seja uma cópia pretérita.
É aqui que Sócrates se encontra: na esquina do tempo político, dividido entre o hiper-populismo espalhafatoso e demagógico de J. Coelho e a austeridade periclitante de Campos e Cunha. E terá de escolher entre o aparelho do PS ou o bem comum dos portugueses.
Estrutura-se assim uma relação circular e doentia de antecipação e autodestruição (pessoana) no sistema político português. Por um lado, os dirigentes políticos anunciam e prometem aquilo que não conseguem realizar (doutro modo não ganhariam eleições); por outro, opinion-makers como José Pacheco Pereira (na blogosfera) antecipam fracassos e privilegiam a mediacracia das agências noticiosas, potenciando os acontecimentos negativos e as evoluções desfavoráveis só para confirmar - para seu deleite intelectual – as suas cépticas previsões; por fim, os alienados dos eleitores, sempre longe da lista de eleição e comendo sopa com garfos, perdem a confiança na condução dos agentes políticos e optam por modalidades de defesa directa dos seus interesses. O problema é que ao escolherem esta via alimentam ainda mais as agendas da mediacracia com temas de conflitualidade, de reivindicação e de desautorização das decisões tomadas pelas instâncias políticas.
É aqui que reside a armadilha do sistema político luso: distorcido pelos dispositivos da Democracia Representativa/DR (legitimidade do voto e racionalizador do interesse geral); da Democracia Participativa/DP (alternativa aquela) que dispensa as funções de intermediação na relação política reaparecendo através de plataformas de corporativismos e degradando a democracia; por fim, a Democracia de Opinião/DO vital para a difusão dos debates, mas fixando uma relação de tensão entre aquelas, na luta pela determinação do que são as agendas noticiosas e explorando o imediatismo dos acontecimentos.
Seleccionando pólos de atenção da opinião pública usando critérios outros nem sempre coincidentes com o bem comum, e até agravando a lente da percepção social entre o anunciado e o realizado. A mediacracia calibra este seu poder em função da sua agenda própria, condicionada pelas audiências de massas que é, como JPP sabe, uma entidade muito diferente do interesse do eleitorado e também não é organizado por fidelidades partidárias. É esta circularidade entre a DO, a DR e a DP que torna doentia e perversa a democracia política em Portugal. Qualquer dia o (a)brupto de JPP defende que as eleições deverão ser semestrais. E eu apoiarei, desde que as obras também sejam inauguradas de 6 em 6 meses…
By Macro, at 1:56 da manhã
Caro Dr. Nuno Cardoso da Silva,
Concordo consigo na necessidade de uma crítica à "demagogia partidária". Aliás, o ponto da minha discordância com Vital Moreira foi exactamente esse. Contudo, a questão está em saber se os mecanismos de "democracia directa" podem ser, no nosso contexto, um instrumento contra uma tal "demagogia"; ou se, pelo contrário, devido ao seu próprio modo de funcionamento, introduzem processos onde a deliberação e a discussão racional se torna cada vez mais difícil e a demagogia, consequentemente, cada vez maior.
By AFS, at 11:04 da manhã
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