Kant e o liberalismo
Deparei-me ontem, em blogs como A Nova Frente e a Causa Liberal, com uma discussão, ocorrida há poucos dias a propósito do duplo centenário de Kant, acerca da relação deste com o liberalismo. O tema foi abordado não só em blogs e penso que, apesar do interesse, muitas vezes o assunto é discutido sem que a questão de fundo se coloque. Tal como é posta, a questão sobre se Kant pode ser assinalado como um pensador liberal não só não é fecunda como é sobretudo, nesses termos, indecidível. A caracterização depende, como é óbvio, da “tradição da liberdade” a que se recorre, para usar o título de um livro de João Carlos Espada. Se partirmos do utilitarismo anglo-saxónico, não me parece que Kant possa ser caracterizado como tal. Se partirmos daquilo a que na Tradição da Liberdade se chama “iluminismo igualitário”, com o que João Carlos Espada se refere às luzes francesas e, penso, particularmente a Rousseau, então dir-se-ia que a relação de Kant com este iluminismo é de grande intimidade, simultaneamente com uma admiração e distância essenciais.
Mas mais do que discutir se é possível dizer se Kant foi ou não um liberal, penso que seria mais útil caracterizar a concepção kantiana de liberdade, perguntando depois pela sua adequação àquilo que a “liberdade” significa nesta “tradição da liberdade” do liberalismo político.
Relativamente à primeira questão, é necessário estabelecer distinções básicas e essenciais na filosofia kantiana, sem cuja consideração qualquer reflexão sobre o tema, e muito menos um debate, poderá avançar. Penso que seria útil aqui a proposta de uma diferenciação de três acepções da liberdade em Kant, em correspondência como a distinção aristotélica das ciências entre teóricas, práticas e produtivas ou poiéticas.
(1) Assim, sob o horizonte teórico, a liberdade surge em Kant como a ideia problemática – discutida na terceira antinomia da Crítica da Razão Pura - de uma causa incondicionada, ou seja, de uma causa que, não sendo causada, é exclusivamente responsável pela série de fenómenos que ela inaugura e a partir dela se sucedem. Ela é teoricamente problemática porque, se só é possível conhecer fenómenos, e se todos os fenómenos remetem para causas que justifiquem a sua existência, não é possível conhecer na natureza algo incondicionado: tudo o que conhecemos remete para uma causa que o justifique e não é possível encontrar aqui, no mundo fenoménico, um testemunho empírico da liberdade (do mesmo modo que todas as nossas acções podem ser fenomenicamente justificadas em função de circunstâncias anteriores que as determinam) .
(2) Contudo, se a liberdade é teoricamente problemática, ela não pode deixar de ser um postulado do ponto de vista prático. Antes de mais, o homem é, enquanto ser racional, indeterminado pela natureza e diferenciado de si mesmo enquanto ser fenoménico ou, o que é o mesmo, enquanto natureza. Não determinada pela lei da natureza, a razão dá ao homem uma lei incondicionada e auto-sustentada, um imperativo não condicional mas categórico, que alimenta um fenómeno (o sentimento de respeito ou atenção, a Achtung) e exige, como sua condição de possibilidade, a liberdade como essência da própria razão.
(3) Mas é possível também falar numa terceira acepção da liberdade em Kant. Ela é não apenas algo problemático para o uso teórico da razão, não apenas algo postulado pela razão no seu uso prático, mas também um fim do homem na sua acção livre em confronto com a natureza, ou seja, na produção, no próprio mundo natural, de um mundo racional e livre. Trata-se, assim, já para Kant – como será explícito em Fichte e sobretudo em Hegel - de produzir a liberdade na fenomenalidade da natureza, através de uma história e de instituições que a construam.
É em função desta terceira acepção da liberdade em Kant (que só será inteiramente explícita no horizonte do idealismo alemão) que se poderia perguntar sobre se as nossas sociedades liberais se podem caracterizar como construtoras ou produtoras da liberdade. Será possível encontrar na “tradição da liberdade” a que o liberalismo hoje se refere uma poiética da liberdade? É esta a questão que aqui é decisiva. E a sua resposta parece-me ser negativa. O que caracteriza o liberalismo político actual é justamente a incapacidade para pensar o sentido prático e poiético da liberdade como não sendo mutuamente exclusivos. Para ele, quanto menos o poder das instituições políticas se afirme, mais os homens serão livres. A liberdade de religião e a liberdade de pensar, o livre mercado e a livre iniciativa, são para ele não atributos de, mas conquistas contra a figura que representa a institucionalidade: o Estado. E situando-se contra o seu poder visível, o liberalismo, querendo viver numa era do “pós-poder”, não pode deixar de contribuir para a emergência da marca fundamental da nossa situação epocal: o desencadeamento de um poder desenfreado, solto e sem limites (cuja presença invisível foi analisada por autores como Foucault), e o crescimento imenso de técnicas de manipulação humana que se estendem desde a publicidade à genética. Diante da presença crescente deste poder, a questão acerca da relação entre Kant e o liberalismo inverte-se. Não se pode responder, sem outras ponderações, à questão de saber se Kant era ou não um liberal. Mas o liberalismo político actual (apesar das tentativas de John Rawls) é decididamente anti-kantiano.
Mas mais do que discutir se é possível dizer se Kant foi ou não um liberal, penso que seria mais útil caracterizar a concepção kantiana de liberdade, perguntando depois pela sua adequação àquilo que a “liberdade” significa nesta “tradição da liberdade” do liberalismo político.
Relativamente à primeira questão, é necessário estabelecer distinções básicas e essenciais na filosofia kantiana, sem cuja consideração qualquer reflexão sobre o tema, e muito menos um debate, poderá avançar. Penso que seria útil aqui a proposta de uma diferenciação de três acepções da liberdade em Kant, em correspondência como a distinção aristotélica das ciências entre teóricas, práticas e produtivas ou poiéticas.
(1) Assim, sob o horizonte teórico, a liberdade surge em Kant como a ideia problemática – discutida na terceira antinomia da Crítica da Razão Pura - de uma causa incondicionada, ou seja, de uma causa que, não sendo causada, é exclusivamente responsável pela série de fenómenos que ela inaugura e a partir dela se sucedem. Ela é teoricamente problemática porque, se só é possível conhecer fenómenos, e se todos os fenómenos remetem para causas que justifiquem a sua existência, não é possível conhecer na natureza algo incondicionado: tudo o que conhecemos remete para uma causa que o justifique e não é possível encontrar aqui, no mundo fenoménico, um testemunho empírico da liberdade (do mesmo modo que todas as nossas acções podem ser fenomenicamente justificadas em função de circunstâncias anteriores que as determinam) .
(2) Contudo, se a liberdade é teoricamente problemática, ela não pode deixar de ser um postulado do ponto de vista prático. Antes de mais, o homem é, enquanto ser racional, indeterminado pela natureza e diferenciado de si mesmo enquanto ser fenoménico ou, o que é o mesmo, enquanto natureza. Não determinada pela lei da natureza, a razão dá ao homem uma lei incondicionada e auto-sustentada, um imperativo não condicional mas categórico, que alimenta um fenómeno (o sentimento de respeito ou atenção, a Achtung) e exige, como sua condição de possibilidade, a liberdade como essência da própria razão.
(3) Mas é possível também falar numa terceira acepção da liberdade em Kant. Ela é não apenas algo problemático para o uso teórico da razão, não apenas algo postulado pela razão no seu uso prático, mas também um fim do homem na sua acção livre em confronto com a natureza, ou seja, na produção, no próprio mundo natural, de um mundo racional e livre. Trata-se, assim, já para Kant – como será explícito em Fichte e sobretudo em Hegel - de produzir a liberdade na fenomenalidade da natureza, através de uma história e de instituições que a construam.
É em função desta terceira acepção da liberdade em Kant (que só será inteiramente explícita no horizonte do idealismo alemão) que se poderia perguntar sobre se as nossas sociedades liberais se podem caracterizar como construtoras ou produtoras da liberdade. Será possível encontrar na “tradição da liberdade” a que o liberalismo hoje se refere uma poiética da liberdade? É esta a questão que aqui é decisiva. E a sua resposta parece-me ser negativa. O que caracteriza o liberalismo político actual é justamente a incapacidade para pensar o sentido prático e poiético da liberdade como não sendo mutuamente exclusivos. Para ele, quanto menos o poder das instituições políticas se afirme, mais os homens serão livres. A liberdade de religião e a liberdade de pensar, o livre mercado e a livre iniciativa, são para ele não atributos de, mas conquistas contra a figura que representa a institucionalidade: o Estado. E situando-se contra o seu poder visível, o liberalismo, querendo viver numa era do “pós-poder”, não pode deixar de contribuir para a emergência da marca fundamental da nossa situação epocal: o desencadeamento de um poder desenfreado, solto e sem limites (cuja presença invisível foi analisada por autores como Foucault), e o crescimento imenso de técnicas de manipulação humana que se estendem desde a publicidade à genética. Diante da presença crescente deste poder, a questão acerca da relação entre Kant e o liberalismo inverte-se. Não se pode responder, sem outras ponderações, à questão de saber se Kant era ou não um liberal. Mas o liberalismo político actual (apesar das tentativas de John Rawls) é decididamente anti-kantiano.
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