Caminhos Errantes

sábado, junho 11, 2005

Liberalismo e excepção

De certa forma, vivemos numa era pós-liberal. O liberalismo nasceu, cresceu e desenvolveu-se representando-se como uma passagem do poder subjectivo do arbítrio e da vontade para o poder objectivo das regras e das normas. Ele foi essencialmente uma polémica contra o arbítrio, contra a vontade desvinculada, contra aquilo a que kantianamente se poderia chamar o incondicionado. O seu grande princípio político foi a construção do Estado de direito. E a sua grande meta foi o impedimento, tanto quanto possível, de qualquer excepção à norma. Ironicamente, é esta meta que hoje se cumpre exactamente pela sua inversão: a tentativa de colocar a excepção fora do campo do possível estendeu a excepção para fora da sua excepcionalidade. O liberalismo actual consiste não no fim da excepção à norma, mas na própria normalização da excepção.

quarta-feira, junho 01, 2005

Um debate acerca da Constituição Europeia

Para além da extrema elevação com que decorreu – em contraste, aliás, com a maioria dos debates em França e, pelo que me diz um amigo conhecedor do idioma, na Holanda –, o debate da SIC-Notícias de ontem à noite acerca da Constituição Europeia foi também esclarecedor, sobretudo na abordagem de duas das questões cuja consideração se releva fundamental para a discussão do assunto: a questão do alargamento, por um lado; a questão da legitimidade, por outro.
1) a questão do alargamento

A questão do alargamento, identificado unanimemente como o problema que despoletou o projecto da Constituição, coloca-nos efectivamente no centro do problema. E este é facilmente abordável a partir da relação de contraditoriedade existente, numa simples teoria dos conjuntos, entre “compreensão” e “extensão”. Quanto mais extenso for um conjunto, quanto mais indivíduos distintos este abarcar, maiores serão as diferenças nele presentes, menos homogéneo será o todo e menos determinado o conjunto. Pelo contrário: quanto menos extenso for, maior será a sua compreensão, coesão e identidade.

O problema do alargamento suscitou assim um problema inevitável: se, pelo menos num momento inicial, a Europa não poderia deixar de perder – com a sua extensão – determinação e homogeneidade, como poderia esta ser recuperada? A solução só poderia ser uma de duas: ou através de uma lenta e progressiva concertação entre os Estados europeus, o que pressupõe a sua igualdade enquanto unidades políticas fundamentais; ou através da imposição de uma forma política que reduz os Estados ao estatuto subalterno de unidades administrativas regionais. A Constituição constitui a opção por esta segunda via, apresentada pelos defensores do “sim” como o único caminho possível. Mas esta via não é nem pode ser a única possível, pois ela surge já sempre como uma alternativa e pressupõe, nessa medida, a primeira. No fundo, tal diferença é há muito conhecida e está expressa sobretudo na distinção alemã entre os conceitos de Liga ou Federação de Estados (Staatenbund) e de Estado Federal (Bundesstaat). A Constituição é, neste sentido, à superfície, uma continuação e aprofundamento dos anteriores tratados europeus; contudo, num sentido essencial e profundo, ela é a tentativa de iniciar uma transição subtil do primeiro modelo para o segundo.

2) a questão da legitimidade

Esta conclusão tornou-se clara no debate de ontem sobretudo a partir da evocação, por Guilherme Oliveira Martins, de uma “dupla legitimidade”: a dos Estados e a dos povos ou populações. Como se sabe, o conceito de dupla legitimidade é um conceito liberal do século XIX, herdeiro da tentativa de compatibilizar os regimes monárquicos com a legitimidade democrática despoletada pelas revoluções americana e francesa. Assim, sobretudo a partir dos anos 30 deste século, a legitimidade do parlamento, representativa dos povos e das sociedades, surgia a par da legitimidade dos reis e dos seus executivos, representativa do Estado propriamente dito.

Como é óbvio, uma tal dupla legitimidade não poderia durar. E não poderia durar porque o conceito de legitimidade remete para um sujeito único e soberano que possa decidir de um modo supremo e legítimo: ou seja, porque a questão da legitimidade se põe inevitavelmente a partir da questão de saber, num caso de conflito, qual dos dois poderes, qual das “duas legitimidades” é efectivamente legítima. Quando uma tal questão se pôs, no século XIX, foi preciso decidir entre uma e outra. E, no caso, esta decisão emergiu como uma decisão contra a legitimidade monárquica e pela legitimidade democrática, ou seja, como uma decisão pelo aparecimento do povo como soberano e poder constituinte: a legitimação de Napoleão III como imperador dos franceses através de um plebiscito, em 1852, traduz justamente esta necessidade de configurar a passagem de uma república a uma monarquia já não monarquicamente, mas de acordo com a nova, única e absoluta legitimidade democrática.

A evocação de uma “dupla legitimidade” na Constituição Europeia significa assim não a possibilidade de estas duas legitimidades – a dos Estados e a dos povos – coincidirem, mas antes a inevitabilidade de elas se contraporem. E é, no fundo, esta contraposição que é posta para decisão ao referendar-se a Constituição. Votar “não” significa defender a Europa como uma união de Estados, como uma união entre as unidades políticas de povos que, ligados por laços comuns, se relacionam na base de uma essencial igualdade. Votar “sim” significa compreender a Europa como uma única unidade política que reduz os Estados a meras regiões administradas mais ou menos autonomamente, determinadas por uma Constituição cujo poder constituinte não pode deixar de se enraizar na evocação de um “povo europeu” ainda inexistente.

É interessante verificar que Jürgen Habermas confirma esta interpretação, ao referir-se ao poder constituinte da Constituição Europeia, ou seja, ao “povo europeu” que a poderia fundamentar, não como uma origem, mas como um fim ou um “telos” a criar como resposta a esta mesma Constituição. Mas importa reconhecer explicitamente que a ideia do nascimento de um “povo europeu”, como resposta à evocação pela Constituição de um poder constituinte, implica inevitavelmente o projecto da morte de que tal nascimento depende: a morte de uma União Europeia constituída pela federação, aliança e unidade de Estados iguais; e o consequente aparecimento de uma Europa não propriamente governada, mas, no fundo, apenas administrada por funcionários dos povos mais fortes e populosos.