Caminhos Errantes

domingo, março 19, 2006

Acho muito bem

Uma colega minha de quem muito gosto, chocada com a medida, perguntou-me ontem sobre a minha opinião acerca do exame que se pensa fazer aos professores para certificação da habitação para a actividade lectiva. Dizia-me que era inaceitável, porque se tratava de um "atestado de incompetência passado às universidades e à formação de professores". Disse-lhe que - apesar de achar este governo, no que diz respeito à educação, em geral inconsciente e desastroso - concordava com a medida. De facto, a verdade é que - há que assumi-lo, como dizia o outro, com frontalidade - todos conhecem professores cuja formação científica é demasiado fraca para darem aulas; e que as formações - devido à crescente redução da exigência científica dos cursos e ao chamado lobby das "pedagógicas", que esconde um pequeno núcleo de disciplinas importantes e efectivamente formadoras sob uma maré de cadeiras vazias e inúteis - não têm conseguido assegurar a imprescindível qualidade científica e maturidade intelectual dos docentes. Mas também me parece que o princípio de um exame certificador de qualidade se poderia aplicar a outras realidades, para além dos professores. Imaginemos, por exemplo, um exame de atestação de capacidades aplicado como teste capacitário para a eleição ou nomeação para cargos políticos. Mesmo uma coisa pouco exigente: saber falar e escrever sem erros; ou saber um mínimo de história de Portugal, por exemplo. Certamente adviriam daí resultados interessantíssimos.

sexta-feira, março 10, 2006

Motorização


Não se resiste ao próprio deus que os próprios filhos devora sempre... É esta frase de Ricardo Reis que mais perfeitamente marca a era que nos determina. As instituições, classicamente entendidas, são construções artificiais destinadas a cristalizações que, sempre frustradas, têm o efeito benéfico de produzir não propriamente uma paragem, mas uma desaceleração do tempo. Elas produzem o efeito que se retrata na figura paulina do katechon. Assim, num tempo em constante aceleração, elas abrandam o movimento, fundam um ambiente humano e respirável, possibilitam o inevitavelmente lento enraizamento dos "bons hábitos" a que os gregos chamaram aretai (excelências, virtudes), instalam confiança nas relações, submetem o automatismo à crítica, a decisão à deliberação, o arbítrio à racionalidade. Neste sentido, os vínculos institucionais estabelecem uma resistência contra a marcha devoradora de Cronos. E é esta resistência que hoje parece ter sido devorada por este deus poderoso. Sem resistência que se lhe depare, um tal deus transformou-se numa simples máquina de trituração, num puro e simples motor que constantemente se acelera. E é desta motorização crescente que tudo se parece hoje tornar servo. Ao contrário do seu sentido originário, as instituições surgem agora como figuras voláteis, configuradas segundo arranjos momentâneos. As universidades confundem ciência com técnica, ideias vagas e associações genéricas. A autoridade e a representação sucumbe sob a voracidade de uma "opinião pública" determinada já não por leituras matinais, mas pelas impressões imediatas de imagens que passam em flash. O governo torna-se no autêntico poder legislativo, incutindo na legislação um puro cunho executivo. Longe de se constituirem como decisões deliberadas, as leis tornam-se medidas tomadas apressadamente para serem corrigidas amanhã. O excepcional e o normal perdem os contornos que os separavam. Desaparece, não a excepção, mas a diferenciação entre esta e a normalidade. Instala-se um estado normal de excepção. E tudo se mobiliza num enorme dínamo em que qualquer diferença, qualquer contorno se esvai.

sábado, março 04, 2006

O novo declínio do Ocidente


Livros como Of Paradise and Power de Kagan e Who are we? de Huntington mostram, no fundo, o reconhecimento cada vez mais explícito de que a categoria geopolítica mais pacífica dos últimos cinquenta anos - a categoria de Ocidente - começa a ser hoje progressivamente problemática. O Ocidente, entendido como um "hemisfério ocidental" que une numa unidade solidária as duas margens no Atlântico, é, ao contrário do que se poderia inicialmente pensar, uma representação recente. A América, sob a preponderância hegemónica dos Estados Unidos, construiu-se como entidade política sobretudo a partir de 1823, com o enunciado da doutrina Monroe. E construiu-se como um espaço fechado não apenas diante de uma Europa envelhecida, à qual era negado qualquer direito de intromissão no "novo mundo", mas sobretudo alicerçada na afirmação republicana e democrática da auto-determinação dos povos contra a Europa da Santa Aliança, fundada num princípio político antagónico de legitimidade dinástica. D0 mesmo modo, os Estados europeus nascidos no século XX - a Rússia Soviética, o stato totalitario italiano e o Führerstaat alemão - surgem ou consolidam-se como reacções contra a Sociedade das Nações, e contra o estatuto que nela os Estados Unidos adquiriam: o estatuto de uma potência que, permanecendo fora desta Sociedade e assumindo-se como condutora de um espaço de influência continental, poderia intervir ilimitadamente a uma escala planetária, através da evocação da justiça e da humanidade pelos Estados americanos representados nesta mesma Sociedade. Os conceitos de "hegemonia" de Heinrich Triepel, a ideia de um "grande espaço" völkisch de Reinhard Höhn ou a reivindicação para o Reich alemão da herança da doutrina Monroe americana, por Carl Schmitt, são testemunhos de que a Segunda Guerra Mundial é compreendida, em larga medida, como uma guerra pela constituição da Europa como um grande espaço, fechado a um "imperialismo" ou a um "pan-intervencionismo" americano. Só a partir do desfecho desta guerra, e do trauma gerado pelas suas consequências e pelo terror da era atómica, a realidade frágil de uma solidariedade atlântica adquire o estatuto de uma entidade perene e natural. E é este estatuto de uma eternidade demasiado apressada que hoje, tanto às mãos violentas da pura acção política como à luz de tranquilas análises teóricas, se parece começar a desfazer. O Ocidente parece ser hoje uma entidade política não por si mesmo, não em virtude de uma consistência intrínseca que se torna cada vez mais problemática, mas apenas porque os outros, os "terroristas", os outrora "incivilizados", "primitivos" ou "bárbaros" são incapazes de nos distinguir. Dir-se-ia que os inimigos da realidade política moribunda que é o "hemisfério ocidental" são assim cada vez mais, paradoxalmente, a força que detém a sua decomposição e a prende à vida. O inimigo converte-se aqui, segundo o dito schmittiano, no próprio irmão. Der Feind ist unsere eigene Frage als Gestalt...

Aporias

Não há identidade que não seja representação. Nada é um consigo mesmo. Viver é ser outro, como dizia Pessoa. E no entanto: não há representação senão de uma identidade. Representar é construir uma identidade artificial, formal, sobreposta a uma multiplicidade concreta.