Caminhos Errantes

quinta-feira, novembro 27, 2003

Guerra na Covilhã

O meu computador, com um vírus que impede um acesso normal à internet, impediu-me de, com tempo, fazer aqui um anúncio: nos dias 28 e 29 de Novembro (ou seja, amanhã e depois) decorrerá na Universidade da Beira Interior, na Covilhã, um colóquio submetido ao tema: “Guerra, Filosofia e Política”. Darei, nesse âmbito, uma conferência intitulada: Sobre a terra e sobre o mar: reflexões sobre a intensificação da guerra. Diante das vicissitudes da nossa história recente, parece-me que é a primeira vez, em Portugal, que o assunto da guerra é abordado e discutido fora da algazarra meramente emotiva e opinativa do costume, ou fora das ligeirezas sofísticas dos comentadores de serviço. Só isso já daria a esta iniciativa do Departamento de Filosofia da Universidade da Beira Interior um mérito extraordinário. Pena apenas que coincida com um colóquio que, na Universidade de Lisboa, assinala o primeiro aniversário da morte de John Rawls, onde também deveria participar. Não percebo como é que, num país com a dimensão de Portugal, não há uma coordenação e uma informação mínima deste tipo de realizações.

Dies irae

Vi, há dois dias, um filme impressionante: Dogville, de Lars von Trier. Não tinha ouvido muito sobre o filme, apenas que era uma conjunção bem conseguida entre teatro e cinema e que apresentava uma perspectiva deprimente sobre a natureza do homem. Nada de novo. Fui ver com curiosidade, mas sem grandes expectativas. Apesar de tudo, Lars von Trier tinha feito filmes bons, como “Europa” e “Dancing in the dark”. Não estava, portanto, à espera da experiência que foi ver Dogville. O filme apresenta-nos uma mulher na figura de um Cristo que veio habitar entre os homens, nas suas pequenas aldeias, nos seus pequenos medos, nas suas pequenas e pacíficas vidinhas. Apresenta-nos o modo como esse Cristo traz a esses homens uma vida nova; o modo como esses homens o recebem e lentamente, sem serem especialmente maus ou perversos, naquilo a que se poderia chamar uma banalização do mal, o traem, o usam, o abusam no quotidiano da sua vida normal. E apresenta-nos, finalmente, o desfecho dessa história normal: o advento do pai vingador, dando à filha todo o seu poder; e a filha que, com dor e lágrimas, assume a responsabilidade que ao poder é intrínseca. Há muito que a nossa vida habitual assenta na sensação de que esse dia nunca virá. Diante de Dogville, não pode deixar de despertar, ainda que mudamente, ainda que silenciosamente, a pergunta: e se viesse?

quarta-feira, novembro 19, 2003

Mal e história

Terminou hoje, em Coimbra, o colóquio internacional A Soberania, dedicado ao pensamento de Jacques Derrida e contando com a honrosa presença deste pensador. Da conferência (aliás significativa) proferida pelo próprio Derrida, dizia-me um amigo, um jornal encontrava matéria, numa pequena notícia, apenas para duas lacónicas notas e referências: dizia que o pensador criticara a política externa norte-americana e atribuía-lhe correctamente a afirmação de que «existe a história porque existe o mal». Não li a notícia. Mas, a ser verdade, eis talvez uma frase (talvez a frase) que não poderia ser citada sozinha, carente de contexto, sem violência. Há nela uma leitura teológica: o pecado começando a história. Há nela uma leitura metafísica: a falta iniciando o movimento no tempo, a passagem perfectiva da potência da dynamis à efectivação da energeia. Há também nela uma leitura ética: a carência despoletando a transformação do homem, o lento enraizamento na sua essência das virtudes que, não estando nele originariamente, nele se convertem numa segunda natureza. Mas, além de todas estas leituras, uma tal frase integra em si a sua inversão, aquilo a que, falando “heideggerianamente”, se poderia chamar a sua Kehre. Se há história porque existe o mal, também o inverso é verdadeiro: há mal porque existe a história. Ou seja: enquanto houver história haverá mal. Por isso, todas as tentativas de erradicar o mal do mundo conduziram inevitavelmente à intensificação, à radicalização no mundo do próprio mal. Todas as tentativas de fazer emergir um mundo definitiva e totalmente pacificado, sem conflitos, geraram (como hoje se torna patente) a identificação ou, melhor dizendo, a indistinção entre guerra e guerra total.

Atacama

Alguna vez, cerca de Antofagasta, entre las malgastadas vidas del hombre y el circulo arenoso de la pampa, sin ver ni oir me detuve en la nada; el aire es vertical en el desierto y no hay animales (ni siquiera moscas), solo la tierra, como la luna, sin caminos, solo la plenitud inferior del planeta.

Pablo Naruda

terça-feira, novembro 11, 2003

De Valparaíso

Estou no Chile, Em Vaparaíso, onde participarei amanhã no VIII Simpósio da Sociedade Ibero-americana de Filosofia Política. Vim na semana anterior, juntando o útil ao agradável, para dar-me as férias que, mercê de circunstancias várias, quase não tive durante o Verão e cumprir um desejo de juventude: pisar as paisagens desérticas de Atacama, estar sob o céu estrelado do Valle del Elqui ou sobre o chão lunar e desolador do Valle de la Luna. Espero muito deste Simpósio. O programa é demasiado disperso, demasiado carregado, mas, em alguns casos, bem interessante e prometedor. Eu falarei sobre um assunto que não é estranho a alguns temas sobre que escrevi, e continuarei (sem considerações pelo ritmo e pela assiduidade) a escrever, neste blog: Despolitización y poder: del declive de la soberanía al poder total. Interessante será sobretudo confrontar os nossos temas e até as nossas preocupações europeias, no domínio da filosofia política, com este mundo sul-americano que, tantas vezes, se tende a considerar fechado, amargurado diante da parte Norte do continente americano, concentrado sobre si mesmo, sobre os seus temas, problemas e dificuldades próprios. Aproveitando a vantagem da língua, mas não apenas por isso, o futuro da universidade portuguesa passa certamente por aqui.