Caminhos Errantes

segunda-feira, maio 30, 2005

O "não" francês

Apesar da sua previsibilidade, deixam-me sempre estupefacto as reacções dos nossos “democratas” mais convictos aos “processos democráticos”. Bem sei que tais reacções nada têm de surpreendente. Mas não deixam sempre de me espantar. Agora, a propósito do referendo francês à Constituição Europeia, com o mesmo empenho com que defenderiam, se o “sim” tivesse ganho, que tal seria a demonstração inequívoca do empenho dos franceses na construção da “sua Europa”, estando o assunto definitivamente encerrado, defenderão certamente que o “não” se deve em grande parte a questões internas da França, devendo ser, por enquanto, desvalorizado – continuando as consultas referendárias noutros países europeus, intensificando neles a propaganda, o marketing e o medo do isolamento –, para ser finalmente, a seu tempo, corrigido. Uma tal estratégia não apenas é moral e politicamente condenável, por assentar num processo inequívoco de chantagem, mas é ainda – o que é pior – intrinsecamente estúpida. E é-o sobretudo porque, diante de uma tal estratégia previsível, o voto francês pelo “não” significa, na Europa, uma tripla vitória que tem de ser aproveitada.

Ele foi, em primeiro lugar, uma vitória da inteligência. Apesar de muitos franceses terem votado “não” pelas piores razões, o “não” francês significa o falhanço de uma estratégia cada vez mais recorrente na Europa: a estratégia maniqueia do “preto e branco” ou do bushiano “quem não é por nós é contra nós”. Ninguém acredita que 56 % dos franceses sejam contra a Europa unida: só a propaganda avassaladora da identificação do voto no “não” com uma tal posição, assim como com a ignorância, as "trevas" e o obscurantismo, por parte sobretudo dos mais destacados políticos franceses e europeus, com prejuízo claro - por parte dos que tinham tais deveres - da sua obrigação de isenção e neutralidade, permitiria uma tal conclusão. Se, apesar de todas as simplificações maniqueístas e de toda a intoxicação propagandística, os franceses votaram “não”, tal significa, antes de mais, uma vitória (uma pequena, mas significativa vitória) da inteligência contra a propaganda. E tal tem de ser aproveitado, sobretudo porque se trata de algo cada vez mais difícil e raro.

Em segundo lugar, o voto no “não” significa objectivamente uma vitória do federalismo. Tal quer dizer essencialmente que ele significa a rejeição da tentativa de estabelecer a União Europeia como uma forma política alternativa a uma Federação ou a uma União Federal dos Estados Europeus, estabelecendo assim uma Constituição Europeia fundadora de uma entidade política situada acima já não de Estados propriamente ditos, mas de regiões mais ou menos autónomas. Só um povo europeu – que não existe – poderia surgir como a base existencial, o poder constituinte de uma tal Constituição. Havendo na Europa não um povo europeu, mas povos europeus com uma história secular, a União Europeia consistiu, de acordo com o seu projecto inicial, não na constituição de um “super-Estado” abrangente, mas numa União ou – como se queira – Federação dos Estados da Europa. O projecto de redução dos Estados a meras regiões, o aparecimento forjado de um povo europeu, a figura de um Presidente eleito universalmente, o estabelecimento do critério populacional para a distinção do peso relativo dos Estados dentro da União, um parlamento em que o critério da nacionalidade deve tendencialmente ser escondido atrás de uma espécie de “véu da ignorância” – tudo isto surge não como o caminho europeu, mas apenas como um caminho; e um caminho não apenas contra o qual, felizmente, os franceses se manifestaram e os holandeses se irão manifestar, mas diante do qual há melhores alternativas.

Finalmente, em terceiro lugar, o voto no “não” significa uma vitória da própria Europa. Se não pode haver uma verdadeira Constituição sem poder constituinte, também não há uma Federação sem laços entre os seus membros. A União dos Estados Europeus pressupõe um minimum de homogeneidade entre os povos da Europa, uma partilha baseada na história, na cultura, na convivência e na vontade. A união entre os Estados Europeus pressupõe assim, antes de mais, a existência de causas comuns e de uma aliança entre eles. Sem estas, a União Europeia transformar-se-ia inevitavelmente num instrumento burocrático para a organização administrativa quer da distribuição de recursos financeiros, quer da sua inevitável contrapartida: o domínio económico dos Estados mais fortes sobre os mais fracos. No momento em que a questão da consistência europeia finalmente se colocou, com o projecto de adesão da Turquia, o voto francês no “não” é não uma decisão definitiva, mas, pelo menos, um sinal dotado de força suficiente. E este sinal abre a verdadeira alternativa que se coloca à Europa: ou a sua existência política como União entre os Estados Europeus e aliança entre os povos da Europa, podendo relacionar-se com outras unidades políticas, mas não confundir-se com elas; ou a sua inexistência política como um mero agrupamento ocasional e inconsistente de Estados, sem qualquer configuração própria ou limite definido, assente não na coesão intrínseca, mas na permanente negociação, nos constantes arranjos e medições de força, no domínio dos fortes sobre os fracos.

domingo, maio 29, 2005

Encore un effort

Encore un effort, français... Como "europeísta" convicto, espero que votem "não"!

sábado, maio 28, 2005

Memórias

Curiosamente, deparei hoje, por mero acaso, com uma passagem de Jünger cuja localização perdera, mas de que não só me recordava sempre, como me recordo cada vez mais. Está em Eumeswil (p. 24 ed. port.):
«Sendo as coisas como são, o melhor que o professor tem a fazer é limitar-se às ciências naturais e ao campo da sua aplicação. Em tudo o que vai para além disso, por exemplo, a literatura, a filosofia, a história, pisa terreno perigoso, sobretudo quando sobre ele recai a suspeita de um "backgroung metafísico". De suspeitas dessas servem-se entre nós dois tipos de docentes: ou tratantes disfarçados de professores, ou professores que, na mira de uma popularidade fácil, se arvoram em tratantes.»

quarta-feira, maio 25, 2005

Democracia e Demagogia

Há umas semanas - foi, creio, no dia 11 de Maio - assisti a um "Café com Filosofia", organizado pela Associação de Professores de Filosofia, na Galeria de Santa Clara, na outra margem do Mondego. Foi uma excelente conversa, com Vital Moreira, a propósito de um tema cuja facilidade é enganadora: democracia ou demagogia. Fiquei surpreendido por duas coisas. Primeiro, pelo meu acordo com quase tudo o que disse o orador: o carácter inevitavelmente demagógico dos processos plebiscitários e a necessidade de evitar, nas nossas condições actuais, uma queda nesses mesmos processos, a partir de um incremento da legitimidade referendária. É, efectivamente, patente a actual tentação de evocar a vontade e a opinião do "povo anónimo", do povo como massa exposta abertamente às maiores propagandas e manipulações, transformando assim os seus ímpetos repentinos, as suas depressões ou os seus entusiasmos momentâneos num critério de legitimidade ou numa espécie de tribunal para a avaliação do que é justo e correcto. Como dizia Johannes Popitz, a maior ameaça para a democracia pode vir do próprio povo.

Mas, em segundo lugar, surpreendeu-me também aquele que é, a meu ver, o carácter voluntarioso com que Vital Moreira se agarra, como alternativa, a uma contraposição entre a demagogia dos processos referendários e uma democracia representativa, assente em instituições e garantias constitucionais fortes, em discussões parlamentares racionais e em partidos políticos dedicados ao interesse público. Acontece que hoje, ao contrário do que se passava nas origens novecentescas das nossas democracias liberais, nem as instituições são fortes, nem o parlamento é racional, nem os partidos são forças anti-demagógicas. Pelo contrário.

Por um lado, a partir de uma concepção puramente normativista do direito, a lei tornou-se entre nós na mais pura e simples vontade do legislador. E como o legislador pode ser - e, em Portugal, efectivamente é - inteiramente dominado por dois partidos aparentemente antagónicos, mas que são, no essencial, o mesmo, podendo alterar a constituição por simples acordo entre si sempre que o seu interesse particular o exija, tal tem como resultado que a normalidade constitucional se indistinga progressivamente de um estado de excepção determinado pelos partidos que, dominando 2/3 do parlamento, se sucedem rotativamente no governo e na oposição.

Por outro lado, o parlamento há muito que deixou de ser uma sede aberta a uma efectiva discussão, onde cruzam efectivamente argumentos homens razoáveis e educados, sinceramente dispostos a persuadir ou a serem persuadidos. O parlamento é hoje reconhecidamente apenas o lugar onde comissários partidários apresentam uma visão parcial e unilateral que procura não acolher e pensar a argumentação contrária, mas simplesmente forjar - se necessário com as mais óbvias falácias - a imagem mediática da sua derrota.

Por fim, os partidos são não barreiras contra a demagogia, mas certamente um - embora não o único - dos seus lugares privilegiados. A transformação dos partidos em centros de espectáculo e máquinas de propaganda, as relações da maior intimidade com "orgãos de informação" que se transformam em "orgãos de mobilização e manipulação", a sua sustentação de uma sociedade cujo espaço público cada vez mais se constitui como uma sucessão vertiginosa de imagens que se sucedem na televisão, a subordinação das políticas à previsão da popularidade e às exigências de um calendário eleitoral, os interesses particulares que se lhe encontram cada vez mais associados, a sua ocupação crescente por um conjunto de pessoas que não tem qualquer conhecimento do significado do mérito e do trabalho - tudo isso dá testemunho de que os partidos são hoje menos os guardiães da democracia, contra as tentações de demagogia plebiscitária, do que os protagonistas de uma democracia que se poderia diferenciar especificamente pela sua qualidade de "democracia demagógica".

Quando Vital Moreira me disse que a demagogia era, na democracia, comparável a uma constipação, eu objectei-lhe que esta era antes uma doença crónica. Ele respondeu-me, com graça, que se poderia viver bem com doenças crónicas, desde que se regulasse a sua intensidade. A imagem parece-me feliz. Mas parece-me também que esta doença crónica da democracia, a demagogia, não pode escapar hoje à imagem de uma doença galopante e degenerativa. Não querer vê-lo pode ser cómodo. Mas não é certamente o mais sensato.