Caminhos Errantes

quarta-feira, novembro 30, 2005

Vanitas

Regressei agora de um almoço com um bom amigo que, entre outras virtudes, conhece a história de Portugal com a profundidade suficiente para ter vontade de emigrar. Não o pode fazer, devido quer a não viver de rendimentos nem de favores, como foi de tradição na maioria dos nossos compatriotas exilados, quer a ter uma mulher mais pragmática e dois filhos pequenos. Como conhece demasiado bem a nossa história, tem por hábito passear com as crianças e explicar-lhes, diante dos monumentos de Lisboa, os detalhes da vida e obra dos homenageados. E confessou-me que ficou, há dias, comovido com a surpreendente dedução de uma das suas crianças. Esta ter-lhe-á perguntado, após ter escutado atentamente o pai: "papá, porque razão fazem quase sempre estátuas de homens maus?"

Instituições

Só há um meio termo entre o mecânico e o orgânico, entre a desintegração e a violência, entre o funcionamento automático do mercado e o constrangimento tirânico do arbítrio: esse meio é o institucional. As instituições são o próprio mundo humano. Elas são pessoas, ou quase pessoas: são o ser sob cuja vigência é possível haver entes pessoais. Hoje, em vez de instituições, temos ou as suas ruínas ou os seus sucedâneos caricaturais, que são as próprias ruínas vistas festivamente e sem tragicidade.

segunda-feira, novembro 28, 2005

Ensino e teoria

Estou um pouco farto de ouvir dizer que o ensino em Portugal é demasiado teórico. Conheço, por contacto pessoal e sem intermediários, poucos sistemas de ensino fora de Portugal, mas tenho, ainda assim, com a Alemanha, a Itália e a Espanha um contacto suficiente. O que mina a educação em Portugal é, no sentido mais rigoroso do termo, a crescente ausência de teoria, alimentada por pedagogias festivas para quem o professor deve ser, cada vez mais, uma espécie de entertainer. De nada serve a internet sem o latim...

sexta-feira, novembro 25, 2005

Multidão

Interessante a conferência de Negri, hoje, em Lisboa. Foi lembrada a ironia de celebrar assim os trinta anos do 25 de Novembro. Com razão. E para gáudio de grande parte da audiência. É bem interessante a tentativa de pensar a nossa realidade biopolítica sob o cunho do "império". Mas no horizonte do biopoder, como pensar a multidão contra o império? Não exigirá o conceito de biopolítica justamente a vida nua, a vida exposta? Como pode a vida ser, ao mesmo tempo, exposição ao poder (vida nua) e resistência contra ele (multidão)?

Inimizade

Em tempos essencialmente anti-heróicos, como os nossos, a pior inimizade traduz-se na caricatura.

Escrever

Escrever é um martírio, quer no seu sentido comum, quer no seu sentido etimológico. Por um lado, é sempre um acto testemunhal. Por outro, é sempre um exercício da mais extrema angústia. Claro que é também um prazer. Mas um prazer demasiado lento e arrastado, repetido e revisto, para que possa provocar, no seu decurso, uma verdadeira satisfação.

quarta-feira, novembro 23, 2005

Der Untergang

Ontem, noite de trabalho destruída pelo facto de ter passado Der Untergang na televisão. Um grande filme, com uma interpretação excelente de Bruno Ganz, em que os últimos dias do III Reich são descritos com uma tentativa da máxima objectividade. Num mundo que se desfaz em ruínas, o real e o irreal vêem diluídas as ténues fronteiras que a cada passo adiam o seu abraço final, e qualquer fantasia é um adereço romântico dispensável. A maior virtude de um filme sobre este tema - e sobretudo de um filme alemão - é aliás a sua não determinação por uma moralidade abstracta, disposta imediatamente a distinguir facilmente entre um bem e um mal hipostasiados. Lembro-me de ter lido, num jornal alemão, antes de o filme estrear, um artigo de opinião que defendia ser perigoso mostrar “o lado humano” de Hitler: mostrá-lo cortês, ao mesmo tempo que irado; mostrá-lo fazendo festas ao seu cão ou dando um beijo na mulher com quem se casou, horas antes de se suicidar; mostrá-lo como um vegetariano preocupado pelo sofrimento animal, ao mesmo tempo que manifestava o darwinismo e o biologismo social que justificou o seu racismo e anti-semitismo. E lembro-me de ter pensado o quanto essa opinião punha a claro, numa ingenuidade quase comovente pela sua sinceridade pueril, o sentido profundo do nosso mundo - um mundo marcado, na sua mais íntima essência, pelo triunfo do maniqueísmo sobre uma concepção grave e cristã do mistério do mal.