Caminhos Errantes

segunda-feira, janeiro 23, 2006

di qualcosa...

Fico contente, tudo somado, com a vitória de Cavaco Silva. Contudo, neste tipo de eleições, mais importante do que ganhar é considerar como se ganha. Durante a campanha, Cavaco Silva lembrava-me sempre, em todas as suas intervenções, o Aprile do Moretti, na cena em que este pedia encarecidamente a D'Alema, diante da televisão: Di qualcosa di sinistra!; terminando resignada e modestamente com: Ma di qualcosa... Por mais que tenha sido eleitoralmente avisada a tentação de gerir a vantagem concedida pelo desastre governativo, parece-me sempre indigno (embora não seja de todo original) eleger alguém só pelo facto de não dizer nada. Seria muito importante que Cavaco Silva se preparasse para um exercício do cargo presidencial num sentido exactamente contrário ao de Mário Soares: em vez de aprofundar a parlamentarizarização do regime, entretendo-se com conversas de circunstância, com a ostentação de uma cultura que não se tem ou com viagens, seria importante que Cavaco Silva desempenhasse o seu cargo como uma instância de exigência em relação ao governo, promovendo, contra as consequências patentes da nossa partidocracia cacocrática, uma cultura de mérito e de trabalho. Infelizmente, apesar das óbvias diferenças de personalidade e de capacidade de trabalho, a campanha de Cavaco Silva não prometeu nada de bom. Quem escutou os seus silêncios, os seus "não devo comentar" e os seus "nins", não pode deixar de temer que ele se prepare para ser em relação a Sócrates o que Mário Soares foi em relação a ele.

domingo, janeiro 22, 2006

Pequena reflexão pré-eleitoral 3

Num contexto marcado, no essencial, quer pela dominação partidocrática, quer pela perturbação crescentemente festiva das condições de deliberação, quer pelo condicionamento da eleição às mãos de sondagens e controlos da opinião, uma democracia efectiva (a qual, sendo saudável, tem sempre também de ser uma aristocracia e uma monarquia) carece essencialmente daquilo a que se poderia chamar uma pedagogia eleitoral. Esta deveria ser ensinada nas escolas e pelos pais. E o seu primeiro ensinamento deveria ser o seguinte: ao contrário do que se diz retoricamente, e do que alguns ingénuos gostariam mesmo de pensar, ao contrário do que dizem aqueles que apelam histérica e dramaticamente ao facto de todos os votos contarem, um voto, felizmente, não vale nada. Umas eleições muito disputadas e renhidas nunca se ganham ou perdem por um voto, mas por umas largas dezenas ou centenas de votos. A probabilidade de um voto decidir uma eleição é menor que a de o Ministro Mariano Gago ganhar o euromilhões. Assim, as pessoas deviam votar criativa e livremente, com as condições de deliberação possíveis, reconfortadas pela irrelevância do seu voto, e não pensando amarguradamente que estão a ajudar este a ganhar ou aquele a perder. As democracias liberais ocidentais assentaram, até agora, no pré-conceito político fundamental do século XIX, ou seja, tendo em conta a era emergente dos "nacionalismos", na apresentação da democracia como critério exclusivo de legitimidade política. Um tal critério concretiza-se hoje na existência de eleições e, portanto, no facto de que se vote. Contudo, naquilo a que alguns chamam "democracias maduras", o essencial é sobretudo não que se vote, mas como se vota. Uma decisão que não seja deliberada não é propriamente uma decisão, mas o acto reflexo e mecânico daquilo a que Aristóteles chamaria uma alma escrava ou doente. No essencial, importaria hoje, entre nós, que os métodos e as técnicas eleitorais não se ocupassem justamente a espalhar a escravidão e a doença.

Pequena reflexão pré-eleitoral 2

Há três dimensões essenciais sobre as quais assenta o modo como decorrem hoje as eleições, transformando-as de decisão política em mera estatística controlada. A primeira dimensão é a da pré-selecção rigorosa de candidatos. Esta tarefa está entregue hoje exclusivamente aos partidos políticos e tornou-se patente, nestas eleições, no afastamento de candidatos destituídos de simpatias e vínculos partidários, num sistema que se caracteriza, no essencial, pela eliminação do mérito, da inteligência e do trabalho como critérios relevantes para a selecção de candidatos. A segunda dimensão é a ausência de condições de deliberação. As campanhas eleitorais são momentos festivos que visam uma única coisa: a ausência de reflexão, de pensamento e de uma efectiva confrontação. Para que a campanha seja eficaz, esta deve não apenas suscitar reacções emotivas e aclamatórias, mas concentrar a atenção naquilo que é o mais acidental e supérfluo: o sorriso, o ar cansado, a migalha de bolo rei caída da boca, a gravata ou ausência dela. Finalmente, a terceira dimensão consiste na necessidade de um condicionamento das escolhas - que em si mesmo se apresentam como secretas - em função de uma projectada imagem da população em bloco, como uma potência maciça ou, segundo a sua representação revolucionária, como uma gigantesca onda do mar. A necessidade de apresentar visivelmente os homens como massas está presente sobretudo naqueles desfiles pelas ruas que animam as campanhas, concebidos à imagem daquelas ondas gigantes que, depois do sismo marítimo, irrompem pela terra dentro, perturbando e arrastando tudo. Esta terceira dimensão está hoje entregue às sondagens, que procuram manter o controlo da eleição como a medição da temperatura permite manter o controlo de um corpo doente e febril. Em Portugal, dir-se-ia que as eleições, devido às três dimensões referidas, alcançaram já um nível autofágico: é sintomático terem sido justamente as sondagens o assunto mais debatido e recorrente ao longo da campanha eleitoral.

Pequena reflexão pré-eleitoral 1

Daqui a pouco vou votar, sem grande vontade de o fazer. Não por ser monárquico e, consequentemente, por achar que deveria ter o direito a que o chefe do Estado a que pertenço fosse uma pessoa livre, sensata e educada, ligando, numa unidade feita das mais extremas diferenças, a sucessão das gerações, e não um comissário de grupos sociais imposto, tendo em conta as circunstâncias próximas, pela propaganda do momento. Um monárquico que não viva exilado deve também votar nas eleições presidenciais. Portanto, voto. Mas voto sem nenhum entusiasmo e com a absoluta convicção acerca da irrelevância política do acto. No fundo, uma eleição desta natureza não é propriamente uma eleição, uma escolha ou uma decisão, mas um registo estatístico tecnicamente controlado. E o controlo técnico da escolha é aqui - para que a eleição realmente funcione como instrumento mecânico em que assenta o funcionamento de todo o aparelho - o decisivo. Se o Estado se transformou numa máquina, as eleições são, afinal, apenas o óleo que propicia a continuação do seu funcionamento mecânico. E, para manter a metáfora, o controlo da qualidade do óleo, a segurança de que corresponda às expectativas, é a própria condição para que este seja utilizado e empregue.