Caminhos Errantes

sexta-feira, dezembro 30, 2005

O poder moderador


O poder moderador é uma espécie de mito constitucional: o mito de um "guardião da constituição", cujo papel, em Portugal, é vagamente evocado como o atributo de uma instância pacificadora, reguladora, conciliadora e consensual. Contudo, se o poder moderador é, na sua essência, um poder político, ele exerce-se a partir do seu possível conflito com um outro poder. A sua efectiva determinação política depende, portanto, da determinação do poder frente ao qual o poder moderador se poderá afirmar. E a tentativa de identificar um tal poder implica, consequentemente, voltar a pensar o sentido da articulação dos três poderes cuja separação constitui a essência do liberalismo. Tais poderes podem ser ordenados em função da sua remissão àquilo a que se poderia chamar dimensões da temporalidade: assim, o poder judicial remete para o passado, na sua administração da justiça; o poder executivo toma medidas e governa em função das circunstâncias presentes; o poder legislativo projecta e delibera tendo como horizonte o futuro. Diante desta caracterização dos três poderes clássicos do liberalismo em função da sua temporalidade intrínseca, como se poderá então identificar o possível adversário de um "poder moderador"? Um tal adversário talvez apareça claramente a partir de uma verificação simples: a verificação de que o grande problema institucional das nossas democracias liberais consiste em estas serem sociedades amputadas de futuro. Com efeito, a experiência fundamental que nos marca, pelo menos desde 1989, poderia ser assinalada como a experiência de uma falta: a ausência de um efectivo advento, o apagamento do vindouro sob um à venir sempre "por vir" e ausente. Assim, a instância deliberativa que exerce o poder legislativo, o parlamento, a qual é em si mesma projectada no futuro, transforma-se numa mera simulação do que era. Ele torna-se num orgão de assessoria de medidas executivas, em que já não são homens livres que discutem o futuro, persuadindo-se ou deixando-se persuadir nos seus projectos, mas comissários de organizações partidárias que auto-afirmam posições, medem forças, contam votos e negoceiam interesses. É então a partir da corrupção do poder legislador do parlamento, preenchido por comissários partidários, que o poder moderador encontra o pólo em confronto com o qual se poderá exercer. Um poder moderador emanado de candidaturas partidárias é, portanto, uma pura e simples impossibilidade teórica.

Presidenciais

As eleições presidenciais que se aproximam, por entre a Gedankenlosigkeit que tornará todo o processo um longo bocejo, previsível e arrastado, apenas serão dignas de nota por duas circunstâncias. A primeira, infelizmente já habitual, consiste no absoluto escândalo com que passa incólume a desigualdade de tratamento entre candidatos. Enquanto uns se entretêm a contar e comparar minutos de exposição televisiva, é sempre renovadamente escandaloso - não pela estranheza, mas pelo cinismo - que, sem que haja sobre isso qualquer reparo eficaz, se promovam debates televisivos e sondagens sobre candidatos partidariamente vinculados, ao mesmo tempo que se apregoa o "carácter pessoal" da eleição e se desencoraja burocraticamente o concurso de candidatos livres de vínculos e de solidariedades partidárias. Num tal contexto, qualquer informação sobre as candidaturas torna-se já imediatamente propaganda. Mas a segunda das circunstâncias que marcarão estas eleições é mais interessante: ela consiste na discussão acerca do "poder moderador" do Presidente, assim como da medida em que o Chefe do Estado deve exercer a sua influência na acção governativa (hoje praticamente administrativa) do executivo. Neste domínio, Mário Soares representa paradoxalmente a tese monárquica - ou pseudo-monárquica - do roi qui règne, mais ne gouverne pas. Atesta-o não só as suas observações sobre o assunto, mas sobretudo a necessária coerência com o exercício dos seus mandatos presidenciais, preenchidos por viagens, comentários, sorrisos, sestas, piadas e apertos de mão, num desempenho ao nível do popular slogan "Soares é fixe". E, neste mesmo sentido, a mais que provável vitória de Cavaco Silva poderia ser, se a personalidade fosse outra, o reencontro da Presidência com a sua verdadeira função, hoje manifestamente usurpada pelos partidos. Numa estrutura assente essencialmente na promoção artificial do conflito, e em que um sistema "cacocrático"* ocupa todo o Estado reduzindo-o a um mero aparelho, a primeira derrota presidencial da esquerda poderia significar a intervenção de uma instância política cujo poder excepcional não só pode, mas deve intervir não propriamente para moderar, mas para corrigir o manifesto assalto do Estado às mãos dos abusos e dos interesses. Pena é que uma tal oportunidade pareça estar já, à partida, desperdiçada.
* Significando o adjectivo grego kakos algo "mau", o contrário de "bom" (aristos), o sistema político da República Portuguesa, como demonstra a mais elementar verificação empírica, parece constituir-se hoje como um rigoroso oposto de uma "aristocracia", ou seja, como uma cacocracia.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

das Gegenwärtige und das Widerwärtige

A língua alemã é, só por si, uma obra de arte admirável. O eixo no qual roda a nossa história assenta na articulação entre duas palavras alemãs que são, na sua relação intrínseca, intraduzíveis: das Gegenwärtige e das Widerwärtige. A nossa história, em particular a história dos três últimos séculos, constrói-se a partir da abertura a um futuro indeterminado que reduz o tempo presente a mera instância provisória, a algo adverso sob cujos escombros importa abrir a efectiva actualidade do que virá. O tempo presente não é então propriamente algo efectivamente actual, um Gegen-wärtiges, mas algo que repugna: um Wider-wärtiges cuja resistência, com a mobilização crescente de todas as forças, há que ultrapassar e desobstruir. O século XXI parece inaugurar-se com o cunho de uma outra experiência do tempo. O vindouro, o mundo novo, o "outro início", os novos céus e a nova terra de um apocalipse desapareceram. Tornaram-se num por vir cuja essência consiste justamente no seu não-advento. E os homens reinstalam-se hoje apaticamente num presente, num Gegenwart, despojado já de qualquer adversidade.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Vida

Não há conceito mais acidentado na sua história que o conceito de vida. Na antiguidade pagã, a vida era o princípio da unidade do vivente: a alma surge assim como a forma do corpo. Para o cristianismo, a vida é mistério e o sopro de Deus nas criaturas: não é só alma (psyche), mas espírito (pneuma). De mistério, a vida passou a bem protegido: ela é o fundamento de toda a vida moderna, assente no pacto protecção-obediência. De bem, passou a valor. De valor, a direito. E, finalmente, como direito protegido, tutelado, administrado, a vida pode agora ser puro objecto exposto à protecção, à tutela, à administração. É nessa medida que ela se tornou hoje exposição a poderes que, na medida em que se exercem sobre ela, como o seu cuidado e a sua simultânea manipulação, são agora biopoderes. A vida torna-se assim exposição, completando um ciclo em que inteiramente se descristianizou, convertendo-se no contrário do que era: o que está exposto é exactamente o contrário do misterioso.

terça-feira, dezembro 13, 2005

A sociedade total e o despojamento do futuro

O fim do Estado - que se torna visível fenomenicamente a partir da sua ratio cognoscendi: a animalização do homem - não precisa de coincidir, para a sua vigência histórica, com a introdução do caos, a perturbação da paz ou a irrupção da pura violência. No século XX, o fim do Estado foi anunciado já pelo fim da cisão entre Estado e sociedade, isto é, pela transformação do Estado em mera "sociedade politicamente organizada". Uma tal indistinção sufucou o Estado, retirou-lhe a carne e reduziu-o a uma espécie de crustáceo cujo exoesqueleto se tornou disponível para ser preenchido segundo o arbítrio de quem tem poder para o fazer. A ocupação do Estado pela sociedade tornou o cadáver do Estado num "Estado total", num Estado cuja extensão cobre quantitativamente a totalidade da sociedade (para o caso, tornou-se indiferente se se trata de um "Estado total de partidos" ou de um "Estado total de partido único"). E esta ocupação teve, na sociedade, uma consequência típica: aquilo a que se poderia chamar o despojamento do passado. Com a totalidade do Estado, foi possível a imposição social de uma visão do mundo (de uma Weltanschauung ou de uma comprehensive doctrine) socialmente unificada: a história tornou-se interpretada, dirigida e cuidada pelo grupo, partido ou movimento social que ocupa o Estado. Mas hoje já não é possível falar - a não ser anacronicamente - em totalidade do Estado. Vivemos hoje não propriamente o fim do Estado, mas também não experimentamos o fim desse mesmo fim; o que hoje aparece é o fim da visão do fim do Estado, o fim de um pensar apocalíptico em torno deste. E daí que, embora já não seja possível falar de "Estado total", a indistinção, a con-fusão entre sociedade e Estado não possa hoje vigorar mais fortemente. Dir-se-ia que é agora a sociedade que se torna "sociedade total". Tal quer dizer que já não se trata hoje de que um movimento social ou um partido totalitário ocupe o Estado e, com o recurso de uma propaganda explícita, imponha uma "visão do mundo" e despoje uma sociedade do seu passado. Hoje, o fim do Estado acontece não como uma ocupação do Estado por um partido, ou por um movimento social totalitário, mas como a sua total falta de autoridade diante da "sociedade total": como uma espécie de processo automático de liquidificação. Com esta liquidificação, e através da sua propaganda implícita, é já não o passado, mas o futuro e o advento de possibilidades que são furtados. O Estado total assenta assim no despojamento do passado. A sociedade total, no despojamento do futuro.

domingo, dezembro 11, 2005

Liberalismo e socialismo

O liberalismo político actual consiste, no fundo, no cumprimento da transformação socialista prevista por Friedrich Engels, na sua alusão à transformação do governo sobre os homens (Regierung über Menschen) numa administração das coisas por elas mesmas (Verwaltung von Dingen). É apenas irónico que este cumprimento assente no desmoronamento do império soviético no leste e centro da Europa, ou seja, no desmoronamento do projecto de acelerar o advento de uma plena administração das coisas por elas mesmas, o fim da política e o fim do Estado através dessa mesma política e desse mesmo Estado. Para acelerar o processo histórico, o socialismo colocou comissários políticos no lugar de administradores, provocando, com isso, a ruína social e económica dos Estados socialistas resultantes do pós-guerra. Contudo, com o fim de um tal projecto de aceleração histórica, assistimos hoje não a um travão ou a uma inversão de caminho, mas à mesma marcha por meios invertidos. Se o socialismo procurou garantir a substituição da política pela economia ao substituir os administradores por comissários políticos e partidários, o liberalismo político executa esta mesma substituição, mas pondo administradores e burocratas no lugar de decisores políticos.

Do político ao administrativo

As desgraças humanas, sociais e ecológicas no século XX foram, em geral, não propriamente catástrofes políticas, mas catástrofes proporcionadas pelo desaparecimento do político: pela principial desautorização do Estado, pela sua subordinação às "dinâmicas" da sociedade civil, pelo desaparecimento progressivo de escolhas tomadas segundo um critério racional e deliberativo, pela "motorização" da legislação e pela automatização das decisões. Só a substituição da decisão política pela medida administrativa permite explicar o que hoje, em geral, acontece.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Massa, população e multidão

Houve um tempo em que o povo foi substância dotada, a seu modo, de inteligência, de vontade, de uma "opinião pública". O mesmo é dizer: houve um tempo em que houve povo. Algures entre a era revolucionária do século XVIII e a Primeira Grande Guerra, o povo foi uma massa, determinada quantitativamente como uma grandeza política decisiva. Como disse Ernst Jünger em Der Arbeiter, a grandeza da massa, a sua capacidade de decidir o que quer que fosse, sucumbiu sob as metralhadoras da Primeira Guerra. Sob as "tempestades de aço", a massa metamorfoseou-se. Da sua metamorfose, emergiu a análise da sua "rebelião", por Ortega, ou a da sua transformação na inautenticidade urbana da "publicidade" do se (Man) heideggeriano. Quando se procurou mobilizar a massa, a partir da Segunda Guerra, esta tinha-se transformado em população, biopoliticamente determinada. Era agora não uma grandeza decisiva, mas um corpo a ser biologicamente cuidado e cultivado, um organismo a ser medicamente imunizado e assistido, uma vida a ser meramente administrada. É a partir da população que surge hoje a imagem da multidão: uma multidão feita de energias individuais, de criatividades e de diferenças. Mas não será esta multidão, esta metamorfose da população, um espectro que anuncia o fim da sua própria possibilidade?

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Identidade


Toda a identidade é fictícia. A alusão à identidade política de um povo consigo mesmo, a evocação da identidade nacional como critério de legitimidade, consiste na tentativa de pensar ficticiamente o conflito, na tentativa de pensá-lo como se (als ob) o povo fosse uma substância cuja unidade lhe estivesse subjacente. A identidade é aqui a própria ficção. Daí que não seja a identidade ou homogeneidade fictícia de um povo, como substância política, que permite conflitos ou antagonismos, mas que se passe exactamente o contrário: é a possibilidade sempre presente dos conflitos e dos antagonismos que cria, com a necessidade da sua subsunção sob um direito que não os elimine, a inevitabilidade de uma ficção identitária.

Comentário ingénuo

Dizia-me hoje um colega, depois de uma animada conversa sobre Schmitt: "but Schmitt wasn't really a nice guy". Pelo que se sabe, em alguns aspectos da sua personalidade, não terá sido. O episódio com Kelsen na Universidade de Colónia, a ser verdade, não foi edificante. Mas como pode um homem que escreve um livro como Terra e Mar não ser "a nice guy"? Isso é para mim incompreensível.

sábado, dezembro 03, 2005

O vindouro

Foi Heidegger quem determinou o modo de ser do homem não só pelo "ter sido" do seu estar já sempre lançado no mundo, não só pela Gewesenheit da sua Geworfenheit, mas pela sua abertura ao vindouro. Dasein ist nicht ein Vorhandenes, sondern es ist Möglichsein - A existência [modo de ser do homem] não é algo que esteja presente, mas é ser-possível. Não tenho o meu exemplar de Ser e Tempo à mão, mas estou quase seguro de não errar a citação. Hoje, aquilo que nos separa de Heidegger talvez seja justamente o desaparecimento do vindouro. Vivemos hoje essencialmente sem futuro e sem possibilidades, em "tempos de indigência", despojados da abertura a algo que estabeleça uma cisão, um corte, uma diferenciação (uma Ent-scheidung) entre o que foi até agora e o que está por vir. O que marca mais radicalmente o nosso tempo é, neste sentido, aquilo a que se poderia chamar um carácter anapocalíptico. E o à venir de Derrida expressa talvez aqui o nosso destino: um à venir caracterizado essencialmente por nunca vir; um advento que seja não presença do mistério e do extra-ordinário, mas precisamente a estranheza da sua ausência.