Caminhos Errantes

terça-feira, setembro 23, 2003

Para além da forja

Toda a vida política e, na verdade, toda a vida em comum assenta, por exigência da sua natureza intrínseca, em "lugares comuns". Não há vida em comum se não houver um lugar, um topos, onde todos se encontrem e descansem. No caso da nossa "vida política", os lugares comuns consolidaram-se e ganharam forma institucional no século XIX: o livre pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade de associação, a liberdade de discussão. Numa palavra: a liberdade de o homem contar a sua história (desde a história universal à história individual) como entende, construindo-a, representando-a, sustentando-a e defendendo-a diante dos outros. Pergunto-me, no entanto, se, apesar da forma institucional e das representações comuns da nossa vida política, a liberdade humana não estará hoje em confronto com uma dimensão mais profunda e mais densa que a própria história. Aquela que é talvez a última fronteira da liberdade liberal não consiste na capacidade de contar a própria história, mas na liberdade de dominar a própria natureza e, nessa medida, a própria vida. Como escreve Sloterdijk, sobre este destino liberal da modernidade: «Seria demasiado pouco dizermos que a Modernidade prometeu ser ela própria, doravante, a fazer a história humana. No seu núcleo ardente, ela não quer apenas fazer história, mas também Natureza» (Cf. Peter SLOTERDIJK, A mobilização infinita: para uma crítica da cinética política, trad. Paulo Osório de Castro, Lisboa, Relógio d’Água, 2002, p. 25).
Semelhante a uma enorme forja, para usar os termos de Ernst Jünger, o século XX consiste num tempo de passagem, numa Zwischenzeit entre a conquista da história e a conquista da natureza pelo homem moderno. A experiência política mais marcante do século XX, o nacional-socialismo alemão, consiste justamente num híbrido político, num cruzamento forçado ou, melhor dizendo, forjado que, nessa medida, surge como um teste às potências e às possibilidades da própria forja. Ele é assim uma “história” fora da história, um “tempo” fora do seu encadeamento em série, um espaço dionisíaco em que tudo parece possível, em que o possível e o real perdem o contorno que os limita.
Poder-se-ia então ver o significado essencial do nacional-socialismo neste cruzamento entre história e natureza. Por um lado, o nacional-socialismo faz a sua própria história, a história da superioridade racial ariana e da sua luta contra o judeu, através sobretudo de uma propaganda que determina puramente pela sua eficácia, sem a mínima referência à realidade efectiva, o que é ou não verdade. Por outro lado, essa narrativa histórica só é possível pela exposição do novo homem nacional-socialista, como uma matéria-prima, à acção inteiramente livre do poder de fazer essa mesma história. Assim, um tal poder já não faz apenas a história, mas constrói à sua imagem o novo homem, naquilo que pensa, quer e sente, ou seja, na sua própria vida. A exposição da vida dos alemães à propaganda radiofónica de Goebbels, a exposição da “vida indigna de ser vivida” a uma eutanásia pretensamente piedosa e a exposição da vida dos judeus à arbitrariedade do poder exercido nos campos de trabalho e de extermínio são os exemplos pelos quais o nacional-socialismo antecipou, ainda no coração do século XX, a expansão do poder da liberdade para a esfera da natureza ou da vida. Mas uma tal expansão exerce-se tão mais claramente quanto mais a liberdade liberal, abandonando a grande forja do século XX, se aproxima da assunção plena do seu projecto. Trata-se agora de fazer entrar na esfera de poder da liberdade humana aquilo a que Giorgio Agamben chamou a “vida nua”.
A formação do homem, nas suas opiniões, crenças, sentimentos e pensamentos mais íntimos, pela expansão dos mass media, a sua infantilização através da passagem para um paradigma espectacular da comunicação, é apenas um bom exemplo da exposição do homem enquanto “vida nua” ao poder paradoxal da liberdade. Mas muitos outros fenómenos contemporâneos se configuram como manifestações, mais ou menos discretas, desta nova liberdade de determinar a natureza: desde a “revolução genética” até ao body building.
Se o século XIX foi a expressão da conquista pelo homem da sua liberdade para moldar a história, o século XXI vislumbra-se como a era em que o homem moldará a própria natureza. A mobilização de milhões de homens pelas revoluções socialistas, ou pelas lutas e movimentos descolonizadores, tem agora a sua correspondência na mobilização do homem em função da determinação exclusiva e privada daquilo que ao seu corpo diz respeito. O corpo humano surge assim como uma espécie de última conquista da própria liberdade humana. Ele é assim já não o "templo de Deus", mas o ponto em que um homem inteiramente livre se torna numa obra de arte de si mesmo. E é neste sentido que, nas sociedades liberais tardias, a vida e o corpo constituem a única fonte essencial, e não meramente conjuntural, de mobilização política. A determinação do corpo e da vida, na sua geração, na sua fecundidade, na sua sexualidade ou até na sua própria morte, é assim o inevitável tema político daquilo a que se poderia chamar um "liberalismo político" tardio e plenamente consumado. As suas várias e mais díspares configurações – as mobilizações a favor ou contra o aborto ou a eutanásia, a paixão dos debates em torno da homossexualidade, por exemplo – são, no fundo, apenas expressões possíveis da única liberdade que hoje exclusivamente pode mobilizar.

sexta-feira, setembro 19, 2003

Debaixo do Sol

«O Sol a todos alumia... Será dádiva ou falta de critério?», lê-se no RAE. No mundo que vive debaixo do Sol não é possível vislumbrar nem moral, nem justiça, nem direito, nem diferenças, nem critérios. Por isso o Sol brilha sobre justos e injustos. E por isso também tudo o que vive, só porque vive, acaba indiferenciadamente por decair e morrer. As diferenças, os critérios, a justiça, o direito são, por exigência intrínseca, extra-mundanos, super-solares. E a sua descida para debaixo do Sol, a configuração do mundo sob o seu critério, que é uma violência para o próprio mundo, é uma tarefa que se vislumbra dificilmente humana.

quinta-feira, setembro 18, 2003

Mudar as regras

Vivemos ainda hoje, sem pensar muito nisso, sob duas “visões do mundo” antagónicas, cujas consequências são paradoxalmente as mesmas. Por um lado, vigora ainda o mais extremo “positivismo”: o exclusivo reconhecimento do histórico e do mundano, a pura obediência à “lei da natureza”, a simples entrega àquilo que é fáctico. Por outro lado, vigora ainda um “dualismo” radical, onde o dentro e o fora, o espírito e a natureza, a moral e a violência, o direito e o poder surgem como mundos separados, como reinos cindidos, cada um regido pela sua lei própria e sem a possibilidade de qualquer mútua interferência. Um e outro têm como consequência a entrega daquilo que é fáctico à sua facticidade, a entrega do mundo à sua lei imanente. Diante desta entrega, temos hoje de pensar a possibilidade de entrar no mundo sem sermos regidos pela sua lei. Não se trata nem de desistir de jogar com o mundo, desvinculando-nos do que é fáctico e retirando-nos para fora dele; nem de entrar no seu jogo, pagando pela entrada a submissão às suas regras e a obediência à sua lei. Trata-se, pelo contrário, de entrar no jogo do mundo mudando as regras do jogo.

Pensar

Uma das mais gratuitas e belas brincadeiras de Heidegger com a língua alemã é a frase: Denken ist Danken; pensar é agradecer. Apesar da variação de apenas uma letra, não existe qualquer relação entre os dois verbos. Mas, a partir da mera semelhança sonora e gráfica, é toda uma meditação sobre a essência do pensar que é permitida. Se pensar é agradecer, ele constitui-se, na sua essência, como uma capacidade de abertura e de receptividade. Ele é sempre o acolhimento de um estrangeiro ou, o que é o mesmo, a confrontação (no sentido alemão de uma Auseinandersetzung) com algo estranho, com um outro irredutível ao mesmo que nos constitui. Mas neste acolhimento que é confrontação, o pensar não é, ao agradecer, passivo. Pelo contrário, ele é puro acto, pura actividade, pura energeia que, como tal, não pode deixar de se ver sempre projectada em algo que lhe dá efectividade: esse algo é a ideia. E é a ideia, a inevitável projecção em que o pensar se projecta, que por vezes se torna perigosa: sem ideias, a história universal teria sido certamente mais pacífica; se os homens se movessem por interesses, e não por ideias, o seu percurso no mundo estaria mais próximo de um sonolento e inócuo passeio bucólico do que de um desfile de conflitos, agressões, guerras e violências várias. Mas como explicar então o perigo que as ideias constituem ou, pelo menos, podem constituir? É que se as ideias são a efectivação do pensar, a sua necessária projecção intencional, elas são também, e justamente por essa razão, a possibilidade da sua cristalização. Pensar é então duas coisas essenciais, inseparáveis e irredutíveis: por um lado, uma actividade que pressupõe uma abertura, um acolhimento do estranho, uma projecção para fora; por outro, a exposição à permanente ameaça da cristalização, e a exigência de sempre, a cada passo, lhe resistir.

terça-feira, setembro 16, 2003

Não havia necessidade

Regressei hoje a casa, disposto a trabalhar, depois da manhã ocupada com a vigilância do exame de Filosofia Moderna e de um almoço entretido com amigos. Desde a semana passada que não visitava blogs, no estrito cumprimento da exigência, feita de mim para mim, de passar por aqui só de vez em quando e cada vez menos. Por isso, fiz uma ronda breve, sem a intenção inicial de escrever o que quer que fosse. Para meu espanto, deparei-me com um post do Pedro Mexia onde, a propósito da nossa conversa anterior, se fazia a transcrição literal de um mail inqualificável que ele terá recebido. Só pergunto uma coisa (e pergunto-o na primeira pessoa): haverá algum sentido em sequer mencionar o meu nome, ou algo do que eu tenha dito ou escrito, ou os blogs de que falei no post anterior, junto de algo tão grotesco e grosseiro? Não me parece, Pedro. E tenho a certeza de que também verás que não. Havia necessidade disso, simplesmente para dizer que não concordas com a minha apreciação do artigo do Público a que fiz anteriormente referência? Citando os clássicos, acho que não, que não havia necessidade.

sexta-feira, setembro 12, 2003

Uma polémica anacrónica

Hesitei um pouco em publicar este post, em parte pelo seu carácter anacrónico, em parte porque não me interessa alimentar certo tipo de polémicas. Mas julgo que, pensando bem, o devo fazer. Vem ele a propósito de um email que recebi da Clara Macedo Cabral há dois dias, onde ela se referia ainda a uma passagem do post em que o Pedro Mexia me respondeu. A passagem é a seguinte: «Não acho sejas fascistal Mas verás que os blogs fascistas já professaram a sua estima por ti. Isso a mim preocupava-me». E, sobre isso, chamando-me a atenção para um artigo do público que eu não tinha lido, mas ao qual o Pedro se tinha referido, a Clara diz-me que (reproduzo com licença dela) «o Pedro tem razão quando diz que os blogs fascistas dizem bem de ti». Em função disso, ela dá-me dois conselhos. Primeiro: «eu continuo a achar que como tradutor que és de Schmitt e de Heidegger te devias demarcar de suspeições anti-semitas». Segundo: «Ó Alex, tu devias demarcar-te dessa gente, senão qualquer dia temos o melhor blog de filosofia em Portugal associado a camisas negras».
Devido a outras ocupações, há muita coisa que me escapa. E a "Gazeta dos Blogs" do Público escapou-me. Como só a li agora, bem como à nota do Dicionário do Diabo sobre ela, apesar do anacronismo das referências e mesmo fora de tempo, gostaria de deixar apenas cinco notas sobre o mail da Clara:

1. O artigo do Público. O artigo do Público é obviamente algo feito ou por má-fé, ou por ligeireza ou pelas duas coisas. Conheço alguns jornalistas e sei como é: por vezes tem de se escrever sem saber o quê, à pressa e sem pensar. Mas por vezes também se cede à tentação de aproveitar o facto de se escrever num jornal para fazer processos de intenção e julgamentos sumários contra pessoas honestas que ficam necessariamente sem defesa. Sobre quem procede assim não há muito a dizer: um jornalista que o faz simplesmente não honra, no momento em que o faz, a sua profissão. E foi o que patentemente aconteceu neste caso. Além disso, embora não queira alimentar polémicas desnecessárias, a justiça manda que diga que o argumentum ad hominem do Pedro foi, neste caso, um pouco infeliz. Bem sei que o bom senso e o instinto de sobrevivência aconselham, sobretudo neste país, a não irritar jornalistas. Mas, que diabo, não se pode sacrificar tudo, escrevendo coisas que fazem jus aos tempos do PREC, simplesmente para ter uma “glória fácil”…

2. O “fascismo”. O “fascismo” não é para mim uma arma de arremesso, como aconteceu com a "Gazeta dos Blogs" do público, que deu ao termo um conteúdo semântico que evoca uma espécie de "espírito de saneamento". De notar que os próprios italianos (que dão cartas em filosofia política) usam simplesmente o termo fascista com o sentido que ele tem: uma teoria política datada, a que se prende, quando muito, o gosto por determinados escritores, pensadores, artistas e poetas, uma sensibilidade, um “ethos” e uma “estética” a que algumas pessoas por educação são hoje sensíveis e outras, pela mesma razão, não são. Lembro-me de um filme magnífico do Moretti (que não me consta que seja fascista) – o Aprile – em que o termo aparece com esse sentido, justamente durante as filmagens dos festejos do 25 de Abril em Itália, e não como um instrumento útil para demonizar fácil e gratuitamente quem quer que seja.

3. Os chamados “blogs fascistas”. No artigo do público vêm catalogados como “fascistas” (devido apenas aos links que estabelecem) dois dos melhores blogs portugueses – o Sexo dos Anjos e o Último Reduto, respectivamente de Manuel Azinhal e de Pedro Guedes –, que, juntamente com outros, me fizeram referências muito simpáticas e a quem eu já devia ter agradecido publicamente. Quanto ao Sexo dos Anjos, não sei se é pelo facto de ser meio alentejano, mas os textos do Manuel Azinhal produziram em mim uma simpatia imediata: eles combinam na perfeição uma capacidade de análise, uma sensibilidade e um sentido de humor que é raro encontrar por aí. Quanto ao Último Reduto, que só conheci depois de ler o artigo do público, foi para mim uma descoberta. Trata-se simplesmente de um blog muito bem escrito e culto, com ironia e inteligência inquestionáveis. Não é uma opinião: é um facto. E a elevação da sua resposta à autora do artigo, no contexto em que se arremessava contra ele, gratuitamente e sem hipótese de defesa, uma “arma de destruição maciça”, dá sem mais o testemunho desse facto.

4. Os “links”. Parece que o único motivo de escândalo da autora do artigo do´Público foi, nesses blogs, os links para o Partido Nacional Renovador e movimentos políticos europeus que com ele têm relações. Devo dizer que tais links não me preocupam grandemente. Estou em muitas coisas em desacordo com o PNR (por exemplo, em relação à questão da imigração, que é a que talvez lhe dê mais publicidade). Mas isso não faz com que ache que pessoas deste partido devam ser ostracizadas, demonizadas, marginalizadas, criminalizadas ou sentenciadas num processo sumário de intenções que é, além disso, degradante sob o ponto de vista humano. Nem me parece que o PNR tenha qualquer especificidade que o torne particularmente imoral face a outros partidos políticos - sobretudo num país onde é perfeitamente aceite que se ganhem eleições a distribuir aventais de plástico em feiras e festas várias, e onde é frequente que a principal preocupação dos dirigentes partidários seja a de aparecer na televisão a certa hora.

5. Conselhos e elogios. Não percebo porque razão um tradutor de Heidegger e de Schmitt deva ser aconselhado a demarcar-se de posições anti-semitas. É verdade que Schmitt, entre 1933 e 1936, influenciado pelo catolicismo da época e pela frustrada vontade de uma carreira política como Secretário de Estado da Justiça, usa expressões anti-semitas (nomeadamente num congresso em 1936, intitulado: A ciência jurídica alemã em luta contra o judaísmo). Mas é também verdade que essas expressões nunca foram assumidas de forma racista (mas apenas cultural) e que Carl Schmitt (com a sua mulher Duschka, que era sérvia) se arriscou nessa época ajudando alunos e amigos judeus (como, por exemplo, Leo Strauss). Quanto a Heidegger, não tenho o livro aqui, mas poderei dar a referência de um texto escrito entre 1936 e 1938 onde o anti-semitismo é descrito como uma «pura estupidez»: o texto está publicado no vol. 65 das «Obras Completas» [Gesamtausgabe], intitulado Beitraege zur Philosophie (Vom Ereignis). Infelizmente, ainda não há traduções dele. Por fim, a elogiosa referência da Clara aos Caminhos Errantes sobre «o melhor blog de filosofia em Portugal»: a Clara é mesmo simpática e generosa, mas o seu a seu dono. E, sem falsas modéstias nem lisonjas, parece-me que o melhor blog no âmbito dos textos filosóficos se encontra noutro sítio, nomeadamente em algo que tem um pouco mais de azul.

quinta-feira, setembro 11, 2003

A "vida dos santos"

A Clara Macedo Cabral, por vezes, deixa-me desconcertado. Ela escreveu sobre Kertész e a sua dolorosa conclusão, diante da experiência da banalidade do mal (para usar a expressão de Hannah Arendt): o que é incompreensível e dificilmente explicável, no mundo, é o bem e não o mal. A vida pertence ao sofrimento. E este pertence à naturalidade daquela. Separar a vida e o sofrimento será talvez amputá-la da sua própria essência. Os “ditadores”, a guerra, a morte (que é o supremo mal e a suprema injustiça) cunham na vida a sua própria figura. Viver é sempre, de algum modo, sentir dor: a vida é o contrário da anestesia. Querer anestesiar a vida, querer arrancar-lhe a dor, não pode deixar apenas de intensifica-la: do mesmo modo que a mais extrema forma de guerra é a guerra total do pacifismo (do pacifismo defensivo ou do ofensivo) em nome de uma última batalha, em nome de uma guerra derradeira contra a guerra. E, assim, na vida, é o irromper gratuito do bem, a graça, a “vida dos santos”, que está para explicar, que é absurda, que vai contra a própria lei do mundo. Como explica-la? Talvez só o aparecimento de Deus entre os homens, a irrupção do divino no mundo, seja o seu fundamento. Nada mais. A “vida dos santos” é o indício decisivo deste aparecimento. A “vida dos santos” é, neste sentido, um testemunho, um martírio.

segunda-feira, setembro 08, 2003

Claro que se pode ser simpático

Verifiquei que o Pedro Mexia se mostrou surpreso ( parece-me que até desagradado) pelo que escrevi no post anterior, a propósito da sua simpática saudação ao aparecimento dos Caminhos Errantes. Ele diz que não gostei da sua saudação e que "já não se pode ser simpático". Antes de mais, importa esclarecer uma coisa: claro que não apenas simpatizo muito com o Pedro como gostei da sua simpática saudação. Quando escrevi que o Pedro «não procurou senão fazer-me uma simpática referência, a qual, como é natural, agradeço e retribuo», não há nesta frase a mais pequena ironia ou equivocidade. Entendamo-nos, antes de mais, sobre alguns pressupostos básicos, que não gostaria de ver afectados por qualquer dúvida. É claro que o Pedro foi simpático ao dirigir-se a mim como se dirigiu. É claro que gostei e agradeço a sua saudação. É claro que tem todo o direito de discordar de mim no que bem quiser e entender. É claro que a vida é, felizmente, feita de diferenças e de divergências. É claro que, apesar de não nos encontrarmos e não falarmos há algum tempo (com pena minha), não apenas tenho grande simpatia pessoal pelo Pedro como aprecio muito as suas incontestáveis qualidades literárias. Dito isto, esclareçamos e justifiquemos também, com a brevidade possível, o conteúdo das minhas observações aos seus comentários.
Naquilo que disse, no fundo, afirmei (e mantenho) duas coisas, que gostaria de conservar separadas. Primeiro: que os comentários do Pedro têm subjacentes pressupostos políticos teoricamente muito superficiais, que são aliás comuns nessa espécie de "moda blogosférica portuguesa" daquilo a que se poderia chamar (se quisermos falar em termos de "famílias politicas") o conservadorismo liberal. Segundo: que alguns comentários políticos do Pedro acabam por estimular, quer ele o queira quer não, uma reprodução clonada de lugares comuns, em que a "blogosfera" (e não só) tem sido fértil, que têm como "dano colateral" inevitável o estabelecimento de pré-juízos e de pré-conceitos que, frequentemente, só se conseguem satisfazer e alimentar a partir da eleição de algumas pessoas como "vítimas sacrificiais" (Réné Girard, por exemplo, explica bem este "procedimento sedutor"). Limitar-me-ei à justificação do primeiro ponto, posto que o segundo parece-me óbvio e ilustrável, se preciso for, por vários exemplos.
Não quero, como disse no post anterior (e digo-o sinceramente), cometer injustiças. Mas parece-me que o Pedro parte do pressuposto de que há à "direita", no fundo, duas "famílias políticas", caracterizáveis a primeira como "conservadora liberal" e a segunda pela negativa (não-liberal e não-conservadora) ou, na falta de melhor, pelo seu carácter "pouco recomendável". O esquema é, parece-me, representável de um modo muito simples e linear. A primeira das "famílias políticas" é de raiz anglo-saxónica, empirista e liberal; acredita na sociedade civil e num conservadorismo prudencial; tem como principal valor a vida privada (a liberdade dos modernos) e gerou, na pior das hipóteses, figuras políticas como Margaret Thatcher. A segunda é de raiz continental, racionalista e autoritária; acredita no Estado e num reaccionarismo contra-revolucionário; tem como principal valor a vida pública (a liberdade dos antigos) e talvez tenha gerado, na melhor das hipóteses, figuras politicas como Mussolini. Por isso o Pedro conclui o seu post desta forma: «as consequências de algumas das ideias da direita não-conservadora e não-liberal são amplamente conhecidas. Por isso as considerei pouco recomendáveis».
Esta distinção parece-me, no máximo, aproveitável para explicar, de um modo muito genérico e não abrangente, alguns matizes da situação política europeia até ao final da Segunda Guerra Mundial. Mas é não apenas demasiado simples, como ineficaz para compreender, na sua complexidade e nos seus problemas fundamentais, as actuais sociedades ocidentais. Parece-me que estas sociedades são marcadas por problemas para cuja abordagem este tipo de "catalogações" (foi neste sentido que usei o termo) é muito pobre e inevitavelmente míope. Cito apenas alguns dos problemas a que me refiro, como exemplo do que quero dizer. Eles estendem-se, por exemplo, pela invisibilização do poder nas sociedades liberais contemporâneas e a sua confusão com a ausência pura e simples de estruturas de poder. Ou pela relação do homem actual com o corpo e as questões relacionadas com a bioética e a biopolítica, no advento para o homem daquilo a que se poderia chamar, para usar o título do livro de Fukuyama, o seu "futuro pós-humano". Ou pela herança directa pelas sociedades liberais do pós-guerra do mais marcante atributo do movimento nazi: o biologismo ou a ideia de uma determinação biológica do homem. Ou pela influência dos media (e o papel dos novos media) na formação e manipulação não apenas das opiniões, mas, mais que isso, das próprias disposições anímicas, do próprio íntimo do homem contemporâneo: o facto de a televisão ter hoje, nas nossas sociedades liberais, um impacto e uma capacidade de influência tão grande quanto invisível, incomparavelmente maior que a propaganda radiofónica de Goebbels na Alemanha nazi. Ou pela crise institucional do parlamentarismo e por aquilo a que se poderia chamar o culto político da ingenuidade e da menoridade intelectual, numa vida política que é essencialmente (e não conjunturalmente) festivaleira. Ou pelo culto da imagem e a desvalorização da palavra escrita. Ou pela perda do "espaço público", do debate efectivo (e não apenas aparente) e do forum, tal como assinala, por exemplo, Alasdair McIntyre. Ou pelo aparecimento de uma espécie de sociedade do espectáculo (para usar a expressão de Guy Debord) em que a vida privada é a única entidade que aparece como digna de ser exposta publicamente: a transformação da vida pública numa espécie de versão do Big Brother; etc., etc.. Para a consideração de temas e problemas desta natureza (que são os que hoje politicamente contam) não me parece que as distinções e catalogações propostas, repetidas e infinitamente glosadas, contribuam grandemente. Mas contribuem as análises de autores como Jünger, Heidegger ou Carl Schmitt (entre muitos outros, "catalogáveis" à esquerda e à direita), nas suas reflexões sobre a técnica, a vida pública ou a funcionalização da vida humana, por exemplo, sendo essa a razão pela qual é simplesmente redutor e equívoco caracteriza-los, ainda que sumariamente, como representantes de uma "direita não-liberal e não-conservadora" pouco recomendável. Dizer, por exemplo, que Carl Schmitt é «o mais brilhante artífice de um esquema teórico de legitimação do nazismo», como diz o Pedro, é, por razões que poderei explicar noutro post, relativamente absurdo, mas ainda assim sustentável, tendo em conta as fugazes aspirações de Schmitt a uma carreira política entre 1933 e 1936, numa interessante e complexa rede política (aliás muito parecida com os actuais bastidores partidários) que o tornou protegido de Goering e atacado com sucesso por Rosenberg e Himmler devido ao seu catolicismo (uma boa biografia é a de Paul Noack, Carl Schmitt: eine Biographie). Mas já dizer que Heidegger «é um autor de uma determinada área política que em certa altura assumiu a forma de nacional-socialismo» é pura e simplesmente errado, tendo em conta não apenas que Heidegger critica abertamente já desde 1933 doutrinas racistas e antisemitas, como que o "pensamento político" heideggeriano pretende encontrar o fundamento do nacional-socialismo num processo a que ele chama um domínio crescente do homem sobre todos os entes (um "esquecimento do ser"), vislumbrando neste mesmo processo - e esse talvez seja o ponto escandaloso, mas interessante - uma continuidade essencial entre as doutrinas völkisch e biologistas dos nazis e as doutrinas "humanistas" das democracias liberais. Assim, caracterizar Jünger ou Heidegger ou Schmitt (ou Nietzsche ou Marx ou Platão ou Sloterdijk) sob a grelha esquemática que o Pedro propõe significa pura e simplesmente perder não apenas a riqueza dos seus pensamentos, mas reduzi-los injustamente a uma espécie de manifestção esporádica e ocasional, previsível e antecipável. E uma tal perda é, no mínimo, um desperdício.
Fico por aqui, num post que já vai demasiado longo para o que tinha em mente como uma breve resposta ao Pedro. Queria, no entanto, voltar a agradecer-lhe a simpatia da referência aos Caminhos Errantes e (apesar da distância) a amizade, que é recíproca. Como ele diz no final do seu post, acima das ideias estão as pessoas. E nisso estamos obviamente de acordo.

sábado, setembro 06, 2003

Sobre mim

Tenho pouco tempo para ler outros blogs ou mesmo para escrever. Por isso, esta página é (e será) actualizada a um ritmo lento, quando calha, obedecendo apenas ao critério da disponibilidade e da ocasião. A urgência de um doutoramento inadiável assim o exige. E, além disso, o meu querido orientador (que é também um grande amigo) não ficaria satisfeito de me saber perdendo tempo de leituras e de estudo na redacção de textos ocasionais - até agora, quase diários - por mais apressados e fragmentários que sejam. Felizmente, não creio que ele se dedique à  "blogosfera"... É também por isso que sinto como uma perda de tempo escrever algo sobre mim, embora alguns dos mais interessantes escritos que conheço, como o Del sentimiento trágico de la vida, de Miguel de Unamuno, ou o Ex captivitate salus, de Carl Schmitt, tenham sido escritos na primeira pessoa, desenvolvendo-se sob a sombra inquietante dessa terrível pergunta: quem és? Mas falar de nós, por vezes, impõe-se-nos. E penso que se impõe um pouco neste caso.
A Clara Macedo Cabral (que escreve no Desejo Casar) telefonou-me ontem, dizendo que o Pedro Mexia se referia a mim e ao meu blog, depois de ter regressado ao Dicionário do Diabo. Fui ver. E verifiquei que o Pedro se referia a mim como sendo da "família política" da "direita tradicionalista e nacionalista", distinguindo-me depois simpática e generosamente como tendo, dentro desta "famí­lia", a rara qualidade de pensar. Aludia, além disso, ao facto de me ter dedicado (e dedicar) ao pensamento de Carl Schmitt, Ernst Jünger e Martin Heidegger, que são certamente alguns (mas não os únicos) dos meus autores de eleição, classificando-os depois aos três como tendo "ideias polí­ticas que não se recomendam" (como se fosse possí­vel - para além das análises superficiais e datadas ao estilo do Pierre Bourdieu de L'ontologie politique de Martin Heidegger, por exemplo - encontrar nestes três autores ideias polí­ticas comuns). As palavras não valem nada para além da imprescindí­vel hermenêutica e, não fosse o Pedro a usa-las, não me preocuparia muito com este tipo de caracterizações. Diante das palavras, é necessário por vezes usar uma máxima esboçada por Wittgenstein: tudo quanto pode ser dito, pode ser dito claramente. Assim, trocando em miúdos, julgo não estar a ser injusto se deduzir que o Pedro disse simpaticamente sobre mim aquilo que um colega meu de Coimbra, professor da Faculdade de Direito, me dizia há uns tempos, por graça, sobre Carl Schmitt: "o homem era um bocado fascista, apesar de ser inteligente".
A nota do Pedro de que as ideias polí­ticas de Jünger, Schmitt ou Heidegger (e, ao que parece, também as minhas) "não se recomendam" - sem que essas ideias (ou pelo menos uma delas, como exemplo) sejam especificadas ou sequer aludidas - soou-me, sem querer cometer injustiças, a uma espécie daquelas advertências contra o perigo de leituras pouco recomendáveis, dirigidas pelo director espiritual ou pelo guru demasiado escrupuloso aos neófitos que tem por demasiado ingénuos. E isso é desagradável porque cola o visado, sem qualquer justificação, a algo que o torna imediatamente objecto de rejeição ou, pelo menos, de suspeita. É claro que eu sei, e que sei que ele sabe que eu sei, que o Pedro, meu colega dos tempos de estudante - ele fazia direito e eu filosofia - não teve qualquer intenção desse género e não procurou senão fazer-me uma simpática referência, a qual, como é natural, agradeço e retribuo. Mas talvez seja essencial, quando trocamos ideias, discutimos ou simplesmente pensamos, livrarmo-nos dos rótulos que à partida nos saem, abandonarmos as cartilhas e os juízos prévios, para procurarmos ir, como dizem os alemães, zur Sache selbst, à  "coisa mesma"... Se o fizermos, veremos que há sempre mais coisas no céu e na terra do que sonhos nas nossas vãs certezas e que, felizmente, a realidade é mais complexa do que o que cabe na simplicidade tantas vezes apressada dos nossos catálogos.

quarta-feira, setembro 03, 2003

No advento do 11 de Setembro

Começamos já a distanciar-nos do 11 de Setembro. Desde esse dia fatídico de 2001, muitos outros assuntos se impuseram como novidades, como estímulos à nossa consciência cidadã sempre empenhada, sempre ansiosa, sempre inquieta pelas novidades. De vez em quando, aqui e acolá, lá reaparece uma reflexão sobre o assunto, sobretudo a propósito da invasão do Iraque, procurando situar, como se fosse necessário, os acontecimentos na origem que os justificam. Mas mais nada. E isso quer dizer que se as emoções televisivas se retiraram dos acontecimentos de 11 de Setembro, cansando-se da cíclica repetição de um burburinho essencialmente patológico, é possível finalmente começar a tentar pensa-los.
A verdade é que o 11 de Setembro, apesar das opiniões apaixonadas, não é nada de novo. De novo, há apenas o ter sido um massacre cometido como uma espécie de espectáculo televisivo, e não executado timidamente, numa vergonha coberta pela invisibilidade e pelo silêncio; ou o ter tido lugar no coração da potência planetariamente hegemónica, onde qualquer um de nós (ou algum dos nossos amigos) poderia estar por trabalho ou por lazer, e não num qualquer canto obscuro da África ou da Ásia. Mas tudo isso é, apesar do choque, acidental. O que o 11 de Setembro, no essencial, representa é a intensificação de um tipo de guerra caracterizada pela incapacidade de estabelecer diferenciações. Para os terroristas do 11 de Setembro que lançaram aviões civis contra as Twin Towers, tudo é indiferenciadamente possível como arma de guerra; e todos são, independentemente das suas diferenças, indiferenciadamente inimigos. Numa palavra: o que o 11 de Setembro, no essencial, representa é a intensificação da ideia de "guerra total", onde todos (beligerantes ou não beligerantes, soldados ou civis, homens, mulheres ou crianças) são combatentes, onde tudo (desde a água às metralhadoras, passando pelos medicamentos ou comida) é um recurso de guerra.
Para compreender a "guerra total" é necessário compreender uma verdade simples: esta só é possível se aquele que a move estiver convencido de que tem razão. Noutros termos: só desencadeia uma "guerra total" quem está convencido de que está a combater uma guerra justa. Esta é a condição de possibilidade daquela. No fundo, o terrorismo só é possível na medida em que os terroristas acham que têm, por justiça, direito ao terror. Só assim eles se podem permitir fazer simplesmente tudo: eles só podem atacar e matar indiferenciadamente apenas na medida em que assumem a consciência de que a sua derrota seria a suprema injustiça e de que têm o direito (de que é justo) tudo mobilizarem, independentemente das convenções e da medida dos sacrifícios, para o impedir.
Nesta perspectiva, eles têm, tanto quanto conheço, dois extraordinários antecedentes. O primeiro foi o General William Tecumseh Sherman, que, durante a Guerra Civil Americana, mandou incendiar Atlanta: a sua guerra era "total" porque, na sua perspectiva, era "justa"; ela não conhecia limites porque os confederados, na sua rebeldia contra a União, no seu esclavagismo, estavam fora do direito e eram, nessa medida, criminosos. O segundo foi o de Arthur Harris, que, às ordens de Churchill, desde 1942, se dedicou ao bombardeamento sistemático das cidades alemãs, sobretudo das suas áreas residenciais, culminando na destruição de Dresden, onde milhares de refugiados, sobretudo mulheres e crianças, tinham encontrado abrigo: também a guerra de Churchill e de Harris podia ser "total" porque se justificava como "justa", porque era conduzida contra um mal e em nome da humanidade.
Mas tendo em conta estes antecessores ocidentais do actual terrorismo islâmico surge necessariamente a questão: se a ideia de uma guerra justa é a condição de possibilidade da guerra total (e do terrorismo), não será necessário recusar aquela para poder trabalhar na superação desta? Não será necessário abandonar uma retórica belicista assente na criminalização do inimigo para poder, pelo menos, esperar acabar com o crime? Não será a retórica criminalizante em que hoje entram as nossas democracias liberais um estímulo à sua própria criminalização, e ao terror que se lhe encontra associado?