Caminhos Errantes

quinta-feira, julho 31, 2003

O rosto

Ernst Jünger via, como uma das marcas da "mobilização total", a entrada do rosto numa configuração estilizada. Em Der Arbeiter, livro publicado em 1932, ainda sob a influência gritante dos combates na Primeira Guerra, ele descrevia o aparecimento do rosto sob a mediação da máscara: a máscara de gaz do soldado; a protecção do que trabalha com materiais perigosos; o rosto invariavelmente barbeado, tornado anónimo pelo uso do chapéu; o capacete do corredor de automóveis; a beleza do rosto maquilhado; o rosto sério do funcionário uniformizado; o rosto gélido de um corpo configurado pela eugenia do apuramento da raça ou, num contexto mais democrático, do training e do body building. Talvez hoje já não sejamos, como Jünger o descrevia, o rosto que aparece mascarado. Talvez sejamos hoje já só a máscara de um rosto que não é nosso: a máscara que desesperadamente procura um rosto.

en arkhê(i) ên o logos...

Há dias, um colega de Coimbra, cujo filho se inclina para essa aventura temerária que consiste em cursar filosofia, confessava-me que, depois de uma procura exaustiva, não encontrara na cidade uma única escola secundária onde se ensinasse grego. Perguntar-se-á: o que tem isso de estranho ou de inaudito? E o problema está exactamente nessa pergunta. Está na habituação progressiva a uma barbarização silenciosa e, por assim dizer, higiénica do país.

quarta-feira, julho 30, 2003

A (i)limitação do poder

Habituamo-nos há muito a encontrar na autoridade do poder o contrapeso da liberdade. Com uma espontaneidade irreprimí­vel, associamos o poder, enquanto exercício de uma autoridade, a uma visão abrangente, a uma visão do alto que se exerce contra nós, sub-ordinando-nos, sub-metendo-nos, sub-jugando-nos, fazendo-nos cair (veja-se, sobre isso, as interpretações heideggerianas sobre o imperium romano, nas suas lições de 1943, dedicadas a Parménides). Com a mesma espontaneidade, defendemos o que somos, a nossa essencial liberdade, contra o poder da autoridade e a autoridade do poder. O poder surge-nos, na nossa quotidianeidade, como essencialmente violência (daí­ a ambiguidade que, no alemão, o termo Gewalt assume). E, com isso, a história da liberdade foi para nós, em larga medida, a história de uma limitação exterior do poder: o poder do príncipe que se limita pelo poder das cortes, na defesa parlamentarista de uma dupla representação; o poder do Estado que se limita pela sociedade civil; o poder do governo que se limita pelo princípio da soberania popular; o poder da autoridade que se limita pela sua subordinação a "guardiães" da lei.
Mas mesmo antes de ser limitado exteriormente, mesmo na fase em que se constituí­a como poder absoluto, o poder tinha uma essencial limitação intrí­nseca: uma tal limitação consistia na sua visibilidade. O poder visí­vel, mesmo o poder absoluto, era, enquanto visível, um poder solar, circunscrito por uma forma que o localizava. Vivemos hoje como se se tivesse consumado uma luta secular dos homens livres, da sociedade por eles formada, contra o poder e a autoridade. Derrotados os totalitarismos na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria que se lhe seguiu, o discurso polí­tico quotidiano alimenta-se da ideia de que vivemos numa espécie de "era do pós-poder". Com um tal discurso, não é propriamente o poder que desaparece, mas apenas a sua visibilidade. Vivemos como se o poder simplesmente não estivesse presente. Mas ele está presente sob a forma da sua invisibilidade. Ele aparece não aparecendo. E quanto mais invisível, mais intenso e menos limitado.

Novidades

Disseram-me ontem que surgiu a notícia de um estudo concluindo que, afinal, as coisas com o euro encareceram. Estou com muita curiosidade sobre ele. Se se comprovar ser verdade, será certamente a notícia mais interessante desde que um estudo de um grupo de cientistas japoneses provou haver vida no planeta Terra e depois de outro estudo de um grupo de investigadores europeus, após anos de pesquisa, ter conseguido demonstrar que o período menstrual é próprio apenas de indivíduos animais do sexo feminino.

terça-feira, julho 29, 2003

Sobre o conservadorismo

A Clara Macedo Cabral, a quem agradeço as boas-vindas à “blogosfera”, admirando-se com a minha concordância em relação à sua opinião sobre o conservadorismo (a de que este se baseia simplesmente num sentimento de aversão à mudança), interroga-me sobre como é possível ser monárquico sem ser conservador. Embora não tenha hoje tempo, nem nos próximos dias, para escrever mais longamente sobre o assunto, não quereria deixar passar mais tempo sem lhe responder.
O ponto central do que eu disse a propósito do conservadorismo é o seguinte: o conservadorismo só aparentemente é uma posição política. E por que razão? Porque, no conservadorismo, não há propriamente uma posição. Para a ter, ser-lhe-ia necessário ter um topos, um sítio, uma radicação num lugar, o que é justamente aquilo que lhe falta (e uma posição monárquica providencia). Daí que, no conservadorismo, não haja propriamente ideias em discussão e que os argumentos conservadores sejam, em geral, irrefutáveis na exacta medida em que são indefensáveis. Eles partem não de ideias, mas apenas de um sentimento que, enquanto tal, não passa das fronteiras da intimidade (e daí o “liberalismo” inerente ao sentimento conservador).
O conservador define-se assim mais através de uma “estética” que de uma “política”. Ele identifica-se por um conjunto de critérios que não derivam senão de impressões e que têm, portanto, a tendência para constituir uma moda: os conservadores são paradoxalmente todos iguais nos seus elogios à diferença e na sua ânsia de cultivar a individualidade; o que os caracteriza é o sacrifício da “ideia” ao “estilo”, assim como uma certa inconsistência que esse sacrifício arrasta consigo. Dessa inconsistência resulta, aliás, como um paradoxo, a mudança de que o conservador não gosta: daí que os políticos conservadores do romantismo, como, por exemplo, Adam Müller, se tenham caracterizado justamente pela constante mudança no domínio político e mesmo religioso.
Lembro-me de que, há tempos, a propósito da invasão do Iraque, escrevi um texto para a Coluna Infame, a que Pedro Lomba teve a amabilidade de me responder, dando-lhe o título Entre Conservadores (22 de Abril de 2003). Na sua resposta, ele terminava da seguinte forma: «Burke é um dos nossos autores; apreciamos a prosa de De Maistre e Bonald mas deixamos os seus livros na prateleira». Esta frase ilustra de forma patente a diferença que pretendo estabelecer. No contexto da revolução francesa, partindo todos eles de uma posição hostil ao ímpeto revolucionário, estes três autores diferenciam-se radicalmente uns dos outros. De Maistre pensa a revolução a partir de uma posição teológica, vendo na revolução não apenas um castigo divino, mas um processo técnico regido por uma legalidade mecânica imanente, onde um homem prometaico acaba por ser devorado pelo próprio monstro que criou (estou convencido, aliás, de que a consideração da revolução por De Maistre é um dos locais onde se abre a possibilidade de pensar a relação entre o homem e a técnica no pensamento contemporâneo). Bonald pensa a revolução a partir de uma posição filosófica, tentando justifica-la a partir de um processo degenerativo de sociedades constituídas. Burke sente a revolução como um britânico (o que é algo meramente ocasional) e escreve apenas um belíssimo livro sobre ela.

segunda-feira, julho 28, 2003

Política e verdade no pensamento de Martin Heidegger

Sei que os meus alunos me criticam por não lhes fornecer lístas intermináveis de bibliografia secundária que, por vezes, impedem de ler o que é fundamental e ir zur Sache selbst... Talvez por isso, aqui vai uma sugestão de leitura de cuja recomendação Marcelo Rebelo de Sousa certamente se esquecerá. Trata-se de Política e Verdade no Pensamento de Martin Heidegger (São Paulo, Edições Loyola, 2003), da autoria de Pedro Rabelo Erber, amigo e colega do tempo em que estive em Freiburg. Este pequeno livro será certamente utilíssimo para a introdução de um público estudantil, e mesmo de um público não especializado, a essa questão "quente" da relação entre a filosofia de Heidegger e a política. Trata-se de uma perspectiva filosófica da análise dessa relação e não de uma perspectiva biográfica, condenatória ou desculpabilizante, do envolvimento de Heidegger com o nacional-socialismo. Numa análise que se espraia por quatro etapas fundamentais - 1. o desenvolvimento do projecto da ontologia fundamental, nos anos 20, e o vislumbre de uma análise política meta-ontológica; 2. O reitorado de 1933-34; 3. A retirada do reitorado e a preparação das lições sobre Hölderlin e Nietzsche, nos anos 30 e 4. A concepção do Estado como uma construção romana, metafísica e, nesse sentido, niilista, nos anos 40 -, o livro de Pedro Erber só peca pelo carácter, por vezes, um pouco apressado da análise e, na minha perspectiva, por não dar relevância à confrontação (à Auseinandersetzung) entre Heidegger e o Ernst Jünger de A Mobilização Total e O Trabalhador. Para quem se interessa sobre o tema, trata-se, no âmbito da bibliografia disponível em português, de um acontecimento editorial relevante.

domingo, julho 27, 2003

Sem ressentimentos...

Um senhor que não conheço – Bernardo Rodrigues, ao que parece - chocou-se com o “post” anterior. Justamente com este! Nos anteriores, eu tinha pretendido apresentar algumas ideias, penso que suficientemente polémicas para merecerem reacção. Um deles – o conto de fadas da liberdade –, apesar de escrito de um modo demasiado apressado, e apesar de sacrificar o rigor à intenção de suscitar reacções, tem na sua base as ideias que, de um modo mais ou menos alterado, servirão de alicerce à primeira parte de um ensaio em que, nos intervalos do doutoramento, gostaria de trabalhar. Para mim, os blogs pareceram-me à partida práticos para poder partilhar e discutir tais ideias, ainda em estado muito embrionário, mas suficientemente formuladas para poderem ser discutidas. Daí que, se houvesse uma reacção a esta minha recente incursão num mundo que me é estranho (e a que certamente permanecerei estranho), gostaria que fosse em relação a elas. Os comentários de outra natureza, como dizia a outra, não me interessam nada. Mas se em relação a este “post”, pondo de parte os comentários amigos e oportunos de dois amigos brasileiros (que aproveito para agradecer), não houve mais nenhuma reacção, o senhor Bernardo Rodrigues resolveu chocar-se e afligir-se com O problema de Portugal, que escrevi por acaso, num desabafo, depois de me ter deparado com uma daquelas situações quase banais em Portugal, mas que deixariam qualquer europeu que conheço (se calhar conheço demasiado poucos além-Pirinéus) com necessidade de um intenso tratamento anti-depressivo. E, com a sensibilidade pungente à flor da pele, depois de me mandar imigrar (SIC), o senhor Bernardo Rodrigues chama-me “rapaz” (o que agradeço, depois de ter feito 30 anos) e “flor de estufa”. Sem ressentimentos: se um dia nos conhecermos pessoalmente, ofereço-lhe amigavelmente um espelho.

sábado, julho 26, 2003

O problema de Portugal

Acho que foi Almada Negreiros quem um dia escreveu (perdoem-me a falta das referências, mas cito de memória): “Um povo para ser perfeito tem de ter todos os defeitos e todas as qualidades. Coragem portugueses: só vos faltam as qualidades!”. E há dias em que, por causa de pormenores que não interessa ter o mau gosto de partilhar, tomamos uma consciência radical e aguçada da verdade dessa afirmação. Os portugueses têm frequentemente a particular capacidade de me irritarem. Amo absolutamente Portugal, mas Portugal quase como obra-de-arte, como ideia: a sua história, a sua terra, o seu mar, a sua luz mais que olímpica ou itálica. Mas, por vezes, Deus me perdoe, sonho com um Portugal vazio de portugueses. Suporto muito mal aquela qualidade de espertinhos e desenrascados, sempre prontos à pior solução, desde que seja rápida e ninguém saiba. Ou aquele feitio naturalmente curioso, sempre disposto ao pequenino comentário, à pequenina ajuda, à pequenina preocupação pela “vidinha” dos outros. Ou aquelas estatísticas que nos põem à frente no consumo de televisão e de telemóveis, e atrás no consumo de tudo o que interessa. E faz muito mal, esse sentimento. Vem-nos logo a memória de acontecimentos passados, até de pequenos pormenores, dispersos a esmo no tempo, capazes de confirmar vivamente a nossa irritação. Por exemplo, a imagem inolvidável, há poucos anos, em Barrancos, de alguns grunhos em tronco nu aos urros, banhados em sangue, saltando em cima de um touro acabado de matar. Ou a de Maria José Nogueira Pinto, também há uns anos, forçada a dançar o "bicho" numa campanha eleitoral do PP. E tudo isto nos confirma o sentimento do comentário atribuído a D. Carlos, no regresso de Paris: lá voltamos nós para a piolheira! E tudo isto nos impõe uma impressão que não gostamos de ter: a impressão de que o grande problema de Portugal é ter portugueses lá dentro.

sexta-feira, julho 25, 2003

A sociedade civil

Lembro-me de há tempos, na televisão, ter ouvido Odete Santos dizer que nunca tinha percebido o que era a sociedade civil. Não era precisa tanta sinceridade. Bastava a informação de que era comunista, o que é público, para que o resto se retirasse por dedução simples. Mas também eu, que não sou comunista, nunca tinha percebido até agora o que é a sociedade civil. Nunca, até há pouco tempo, quando me decidi a pegar no carro e ir até Itália, por causa de um seminário interessantíssimo que por lá houve (by the way: veja-se como deve trabalhar um Instituto de Estudos Filosóficos, apesar do caos organizativo inerente à área temática). Só o trânsito no Sul de Itália me permitiu compreender o que verdadeiramente é a sociedade civil. Ver Nápoles e morrer, certamente! Mas também: entrar em Nápoles e guiar!

O conto de fadas da liberdade

«Aquilo que Ernst Jünger pensa nos pensamentos de domínio e figura do trabalhador, e aquilo que vê à luz deste pensamento, é o domínio universal da vontade de poder dentro da história vista planetariamente. Nesta realidade efectiva está hoje tudo, chame-se comunismo ou fascismo ou democracia universal».

Martin Heidegger (1945) [Das Rektorat 1933/34 – Tatsachen und Gedanken, publicado com Die Selbstbehauptung der deutschen Universität, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1990, pp. 24-25]

Habituamo-nos sempre com demasiada pressa a erguer barreiras, estabelecer limites, dispor balizas entre fenómenos que acabam por se manifestar não como distintos na sua essência, mas como várias configurações do mesmo. Um tal hábito não é humanamente evitável. Afinal, é ele que nos permite a consciência indispensável para agir, possibilitando-nos habitar o nosso tempo com o entusiasmo de quem vive uma nova era historicamente decisiva. Contudo, se não é desejável eliminar a possibilidade do entusiasmo, condenando-nos à inacção por um excesso de inteligência, também não é admissível comprá-lo, pagando por ele o preço da ingenuidade. É este preço que todos aqueles que hoje fazem da política uma profissão, assim como a “intelectualidade” que os sustenta, não podem deixar de pagar como um tributo. Não há hoje político profissional que não se alimente daquilo a que se poderia chamar a narrativa histórica do liberalismo político. Para eles, a história do homem moderno consiste num percurso linear, acidentado mas progressivo, pelo qual este se conquista como livre e senhor de si. Foram primeiro as guerras civis europeias entre as várias confissões cristãs, que terminam com o reconhecimento da liberdade de cada homem na eleição do seu modo íntimo e interior de adorar a Deus; e, no seu seguimento, com o reconhecimento da liberdade de pensamento, de consciência e de expressão. São depois as revoluções americana e francesa, nas quais os homens, reunidos sob a forma do povo, ousam afirmar, sem a mediação de príncipes ou representantes, a sua identidade com o soberano. É, finalmente, o século XX, o século de todos os perigos, em que a chamada “tradição da liberdade”, herdada dos séculos anteriores, ameaçada por todos os lados pelo obscurantismo, se instala definitivamente sob a derrota militar, económica e social da intolerância e da violência. A nossa vida política quotidiana ergue-se sobre este “conto de fadas” da liberdade. Nesta narrativa liberal da liberdade, entre o século XVIII, o século da revolução, e o século XX, o da ameaça e consagração definitiva do seu projecto, o século XIX, o século do parlamentarismo, situa-se como um simples século de transição. Contudo, este século, longe de se constituir como uma transição, é justamente o século que põe a nu o carácter forjado do “conto de fadas” liberal. Aqui, a liberdade surge já não apenas como uma liberdade de consciência (a liberdade de escolher a própria religião), já não apenas como uma liberdade política (a liberdade de escolher o próprio governo), mas como a liberdade de fazer e de contar a sua própria história. É esta nova liberdade que pelas grandes narrativas políticas é justamente anunciada – chame-se comunismo ou fascismo ou democracia universal. Depois desta nova conquista da liberdade humana, a história, e a própria narrativa liberal da liberdade, é ela própria um produto da liberdade. Não é então já a história que surge como uma história da liberdade, mas é a própria liberdade que faz a história, que a conta e a constrói, construindo e dominando, com ela, os próprios homens enquanto objectos expostos ao seu poder. E é esta mesma liberdade que hoje, como escreveu algures Peter Sloterdijk, não se basta com o domínio da história, mas passa à conquista da natureza, num processo de mobilização e domínio que expõe o homem – no seu corpo, na sua vontade, no seu pensamento, nos seus sentimentos, na sua “vida nua” (para usar a expressão de Agamben) – ao poder imanente de uma liberdade não humana, cujo percurso apenas obedece à lei mecânica do seu incessante crescimento. Diante da emergência do homem como um Golem, como uma criatura artificial da própria liberdade, a visão liberal da história, que vê sempre, em geral, a abertura de uma “nova era” da liberdade, surgindo de uma confrontação com as várias configurações possíveis da violência do poder, não é senão o imprescindível e piedoso contributo para uma anestesia consoladora.

quarta-feira, julho 23, 2003

Para a Clara: sobre as mudanças

A minha querida amiga Clara Macedo Cabral escreveu aquela que é, no fundo, uma grande verdade. Não são pessimismos antropológicos, críticas ao utopismo ou meditações históricas desencantadas, enquadrados numa teoria política elaborada, aquilo que caracteriza (não apenas em política, mas na vida em geral) os conservadores. O que os determina é não uma teoria, mas um sentimento: a aversão à mudança. O conservadorismo é assim não uma teoria, mas uma patologia política. Todos os seus recursos argumentativos, todas as suas análises históricas, todas as suas considerações sobre o homem são puramente emotivistas. Não há ideias no conservadorismo, mas apenas pseudo-ideias que evocam conceitos equívocos como a experiência, a sensatez, a razoabilidade das lições da história e do passado: estas não são senão o suporte e a confirmação de um sentimento íntimo que não podem partilhar. O conservador estuda e lê não para procurar o que não sabe, mas para se reconfortar no reconhecimento do sentimento que já possui. Daí que todo o conservadorismo seja, por natureza, liberal. O liberalismo é justamente um ocasionalismo político. A sua essência consiste na recusa de que a política, furtando-se ao autismo dos sentimentos, se possa basear na possibilidade de uma discussão e de uma polémica efectivas, assim como da persuasão que se lhe segue, num exercício de inteligência de que brota a autoridade. Na instituição política liberal por excelência - o parlamento - não há lugar para pensar ou discutir. Não havendo persuasão, trata-se aqui não de discutir, mas de imitar uma discussão, numa simultaneidade cacofónica de monólogos previsíveis. O conservador pertence, nas suas alusões ingénuas ao dinamismo, à liberdade e à vitalidade da sociedade civil, ao coro cacofónico que alimenta a pseudo-discussão desta "classe discutidora", como lhe chamou Donoso Cortés. Além disso, em Portugal, o conservadorismo liberal tornou-se numa moda desinteressante. Por cá, ele é apenas uma imitação directa dos piores hábitos ingleses, dirigidos contra uma tradição continental europeia, em que o humor e o sarcasmo são usados frequentemente para camuflar a superficialidade e a ignorância. Como é possível que haja tantos conservadores num país onde já quase nada há para conservar?

A Henrique Barrilaro Ruas (1921-2003)

Talvez não haja acto com menos sentido, nas suas intenções, do que um elogio fúnebre. Trata-se, no fundo, de dizer a alguém, já morto para este mundo, a falta que nos faz e as graças que a sua existência nos trouxe. E tudo isso com o sentimento incómodo de que o deveríamos ter feito em vida, quando ainda nos podia escutar e se encontrava entre nós. Temos a íntima certeza de que ele conhece o significado e a importância que para nós teve a sua vida. Mas lamentamos não termos dito com uma clareza suficiente, de viva voz, tudo aquilo que agora, sob a mediação da morte, somos finalmente capazes de explicitar.
Conheci Henrique Barrilaro Ruas quando tinha quinze anos, em 1987. Por essa altura, eu tinha já pensado em filiar-me na Juventude Monárquica, animado pelo entusiasmo juvenil que então rodeava o Partido Popular Monárquico, que quase elegera Miguel Esteves Cardoso para o Parlamento Europeu e que, na cidade de Lisboa, sob a direcção de Gonçalo Ribeiro Telles, sustentava o único movimento cívico que verdadeiramente se preocupava com a cidade: o Movimento Alfacinha. Tanto nos tempos do PPM, como nas tertúlias, debates e convívios que acompanharam e se seguiram a esses tempos, a figura de Henrique Barrilaro Ruas foi, para mim, um decisivo exemplo de formação filosófica, política e humana. Lembrar-me-ei sempre não apenas da sua figura, mas também especialmente da sua voz, quando, ao falar, a inteligência na análise e a clareza na exposição eram acompanhadas por uma voz profunda, inconfundível, cujo tom, já um pouco trémulo, emprestava ao discurso o carácter das palavras decisivas. Diante de um Portugal apequenado e politicamente indigente, numa vida cívica quase sempre rasteira e medíocre, a sua voz era, para mim, a evocação imediata das “realidades permanentes” a que tantas vezes gostava de aludir.

O primeiro

Este é um primeiro "post" experimental. Inauguro-o com a dedicatória que escrevi, neste ano lectivo, para o livro de curso dos meus alunos finalistas de Coimbra, esperando que sirva de mote aos textos que se escreverão nestas páginas.

O poeta Hölderlin atribuía à poesia duas qualidades só aparentemente contraditórias: ela seria, ao mesmo tempo, a mais inocente das ocupações e o mais perigoso dos bens. Assim é também o pensar. E assim a filosofia. Por isso, soprando a poeira de banalidade que se acumula nos exemplos tantas vezes aludidos, e tão raramente praticados, não exijamos de nós menos do que a partilha deste destino. Lancemo-nos na vida como Tales no seu poço, sem ficar à margem, troçando, numa troça anestesiada, com as escravas da trácia. Sem nos furtarmos ao seu mistério, encaremo-la de frente, em tudo o que é e representa: a doença, a loucura, a agonia, a dor, o mal, a morte, o nascimento, a alegria, a festa, a criação, a esperança, o amor. Mas façamo-lo sem peso e com uma coragem risonha. Longe da triste repetição de uma vida que seja só o passar das suas horas, guardemos para nós a mesma inocência com que a aurora, de dedos róseos, rasga nos seus cavalos alados o horizonte de cada manhã, trazendo a cada dia, seja de tempestade ou de sol, um largo sorriso sempre novo.