Caminhos Errantes

domingo, agosto 31, 2003

A alegria e a dor

Talvez toda a causa da dor consista em importarmo-nos uns com os outros. Mas também será essa a causa de toda a alegria. Eis o paradoxo fundamental: a dor e a alegria partindo irmanadas de um princípio comum. No meio, entre uma e outra, está uma anorexia, uma anestesia tentadora: ficar fechado sobre si, a sós consigo mesmo, sem desejos nem sensações, sem pathos, sem entusiasmo nem sofrimento, sem alegria nem dor. É tentadora, talvez até saudável e sensata, a proposta de um budismo piedoso. Mas valerá a pena viver sem riscos? Valerá a pena anular o sofrimento à custa da morte simultânea da alegria? Apesar da origem comum, não é a alegria, como se lê no Zaratustra de Nietzsche, sempre mais profunda que a dor? Não é só a alegria que quer e conquista a eternidade?

sábado, agosto 30, 2003

O sonho de uma sombra

Skias onar anthrôpos. O homem é o sonho de uma sombra.... Assim se refere Píndaro ao homem, na VIII Ode Pítaca. O genitivo tem aqui um duplo sentido, que intensifica o enigma da expressão. Somos o sonho sonhado por uma sombra. Mas somos também, ao mesmo tempo, a sombra que reflecte o sonho por si sonhado. Podemos olhar para tudo, menos para nós mesmos. Somos, por essência, ex-cêntricos, des-centrados. Sabemos de tudo, menos de nós. Somos apenas o sonho pela sombra sonhado. Ou a sombra que o sonho projecta. O sonho como reflexo da sombra. A sombra como reflexo do sonho.

sexta-feira, agosto 29, 2003

The meaning of life

Uma das mais interessantes características da “blogosfera” é a do ritmo em que se supõe dever escrever. Dentro de certos limites, é comum a impressão de que a página tem de ser renovada com frequência, sob pena de morte. E, neste ritmo, o que fica para trás ganha inevitavelmente, por recente que seja, um aspecto anacrónico. Independentemente disso, e com o risco do anacronismo, gostaria de regressar ao texto The meaning of life, de Paulo Varela Gomes, escrito nesse já longínquo dia 25 de Agosto.

O pano de fundo é genericamente o da afirmação de que “terroristas” e “extremistas (ou belicistas) americanos” são, no essencial, iguais. Para PVG, eles confundem-se, diferenciando-se como grupo de um tipo de homens distinto, capaz de aceitar o real sentido da vida. E qual é ele? Diz PVG: «A História não passa da história de uma espécie de seres vivos a procurar crescer e multiplicar-se». Temos então, segundo PVG, a existência de dois tipos de homens fundamentais: dito numa linguagem de sabor nietzschiano, os que afirmam a vida e os que a negam. Por um lado, surgem aqueles que aceitam “a vida como ela é”. Para estes, viver é apenas “crescer e multiplicar-se”, adiando a morte tanto quanto possível, expandindo a vida só por viver, sem perturbações dispensáveis e com a “anestesia” possível. Por outro lado, surgem os “brutos”, aqueles para cuja caracterização PVG elege o título “humanistas”: aqueles que dedicam a vida a um fim maior, sacrificando-a em nome de uma meta que a transcende. Os primeiros são cépticos e sensatos, contribuindo consciente ou inconscientemente para uma expansão óptima da vida. Os segundos são fanáticos e sempre, pelo menos potencialmente, perigosos.
No fundo, a distinção elaborada por PVG baseia-se nas duas possibilidades de resposta a esse velho dilema, tantas vezes repetido e glosado: vivemos para comer ou comemos para viver? Segundo PVG, os homens sensatos sabem que vivem para comer: sabem que a vida consiste justamente apenas em ir vivendo, em ir alimentando e reproduzindo a vida. Os outros, os fanáticos, pelo contrário, sejam eles «os terroristas, os comunistas, os fascistas, os extremistas americanos» (mas também os religiosos, os generosos, os heróis ou os mártires de qualquer espécie), comem apenas em função de um fim que justifique a vida na sua manutenção; vivem (ou querem viver) para uma “vida maior”, capaz de sacrificar a “vida mundana”; respiram em função de uma meta, de uma ideia, de um telos que não se esgote apenas no crescimento e na reprodução.
Parece, no entanto, que a imagem de PVG não dá conta de uma distinção que, para o caso, é essencial. É que muitos dos “extremistas americanos” a que PVG se refere, assim como grande parte daqueles que apoiaram a intervenção americana e britânica no Iraque, são politicamente liberais. E isso quer dizer que eles partem não de uma “doutrina englobante”, de uma “visão do mundo” que pretendem impor e confirmar pela força, não da adesão a uma ideia do que seja o fim ou a felicidade da vida humana, mas justamente da posição contrária: da ideia de que esse fim é relativo, situado culturalmente e, portanto, de que é impossível e ocioso tentar sequer encontrar para a vida humana um fim que a transcenda. Os defensores liberais da invasão do Iraque, de que Pacheco Pereira é aliás um óptimo exemplo, estão, como PVG reconhece, do lado dos “homens sensatos”: eles são, quanto aos fins, quanto à teleologia, radicalmente distintos dos terroristas.
Mas se é assim, se os liberais americanos e europeus defensores da invasão fazem parte afinal do grupo dos “homens sensatos” e não dos “fanáticos”, será que PVG tem razão ao afirmar que os “terroristas” e os “extremistas americanos” (e europeus) são, no essencial, iguais? Penso que, no limite, sim. Mas isso deve-se a uma causa diferente da que por ele é assinalada: deve-se ao facto de a diferença entre os tipos de homem que identifica se estabelecer não em função do fim que eles servem, mas do princípio pelo que agem.
Na verdade, habituamo-nos cada vez mais a agir em função de princípios que não são nossos. E essa habituação é geral. Dir-se-ia que o tempo parece marchar no sentido de uma heteronomia cada vez mais radical. Apesar das retóricas humanistas, interpretamo-nos cada vez mais não como sujeitos, mas como objectos de uma história cujas leis não dominamos. Habituamo-nos a olhar para a vida dessa forma. E desse modo de olhar participamos hoje todos.
Quando PVG diz que a «história não passa da história de uma espécie de seres vivos a procurar crescer e multiplicar-se», ele vislumbra na vida uma espécie de génio subjacente ao homem, dirigindo-o em todos os seus movimentos e acções; e no homem apenas um objecto dirigido pelo génio da própria vida. Quando Hitler dizia que “combatendo o judeu cumpria os desígnios do senhor”, ele via-se a si mesmo como um servo, como um instrumento, como um objecto de uma história cujos movimentos o ultrapassam. E, finalmente, quando os nossos liberais contemporâneos defendem a guerra no Iraque debaixo de uma visão maniqueia do mundo, sob a imagem de uma luta entre a liberdade e o terror, entre o bem e o mal, eles dizem implicitamente que apenas fazem o que têm necessariamente de fazer, como instrumentos de um processo histórico em que o terror e o obscurantismo dão (ou devem dar) lugar à liberdade e à democracia. Por maiores que sejam as diferenças entre nazis e liberais, ou entre beligerantes euro-americanos e terroristas, une-os uma mesma essência, uma mesma perspectiva subjacente à diversidade das suas visões da história: a gradual transformação do homem, de sujeito livre da história em objecto feito e mobilizado por ela. Diante dessa perspectiva comum, talvez tenhamos de pensar, de repensar e de repensar ainda na frase de Ernst Jünger: basta um homem para provar que a liberdade ainda não desapareceu – mas desse temos necessidade.

terça-feira, agosto 26, 2003

Como se...

No Semestre de Verão de 1934-35, na Universidade de Freiburg, Heidegger lia as suas primeiras lições dedicadas à poesia de Hölderlin. Por essa altura, ele já tinha abandonado o reitorado da Universidade, para onde tinha sido eleito em 1933, com o apoio do Partido Nacional-Socialista recentemente chegado ao poder. Contudo, a permanência da sua militância no partido, que se estendeu até ao final da Segunda Guerra Mundial, e as esporádicas mas elogiosas alusões à “grandeza e significado interior do movimento nacional-socialista”, que se estendem para além do reitorado, motivaram primeiro na Alemanha, mas depois sobretudo na França, o cíclico e crescente aparecimento de publicações acusatórias, denunciando o “nazismo” daquele que era considerado por muitos como o maior nome da filosofia alemã. Penso que é sobretudo contra as primeiras lições de Heidegger sobre Hölderlin que todas estas acusações chocam e se desfazem. Nelas, em sessões públicas vigiadas pela Gestapo e visitadas por jovens fardados, Heidegger atrevia-se a ridicularizar publicamente as teses biologistas apresentadas não apenas por um poeta apreciado pelo novo regime - Erwin Guido Kolbenheyer -, mas também pelo “pensador oficial” encarregado de estabelecer a Weltanschauung, a “visão do mundo” do ainda jovem movimento: Alfred Rosenberg, autor de O Mito do Século XX e chefe de redacção do jornal oficial do partido, o Völkischer Beobachter.
A avaliar pelas suas biografias, Heidegger não era um homem particularmente corajoso: o que lhe faltava em coragem sobrava-lhe certamente em argúcia, paixão filosófica e capacidade de intelecção. E este dado permite dar a entender que, na sua perspectiva, se tratava, nas suas lições sobre Hölderlin, de um assunto suficientemente grave e nuclear para que devesse, apesar da prudência imprescindível, arriscar a pele. A tese contra a qual Heidegger se atira nas lições é aparentemente banal e datada: a tese de que a poesia é uma função biológica de um povo saudável. Aparentemente, dir-se-ia que se trata de uma simples consequência de uma doutrina que se procurava estabelecer como um racismo biologista, onde a raça se erguia gradualmente como o factor determinante do homem, no seu pensamento e na sua actividade histórica. Aparentemente, portanto, dir-se-ia que se tratava de uma explicação da "poesia" a partir da "biologia", explicação cujo destino se colava ao destino do racismo nazi. Mas não é assim. E isso foi talvez Heidegger o primeiro a ter compreendido.
Derrotado o racismo nazi por aquilo a que os princípios políticos liberais hoje triunfantes gostam de chamar a “civilização”, o biologismo regressa e regressa, num eterno retorno, sob as mais variadas figuras, máscaras e transformações. Camuflado sob uma retórica política que continua a eleger como palavra de ordem a liberdade (concebida na herança da barreira protestante entre a intimidade da fé e a mundaneidade do corpo e das obras, regida esta por uma lei natural a cuja determinação a alma livre estaria imune) o biologismo aparece hoje não como uma “doutrina”, uma “tese” contestável, mas como um horizonte comum de referência partilhado consciente ou inconscientemente por todos como algo evidente. Falamos hoje, é certo, muito de liberdade. Mas quanto mais a reivindicamos, mais assumimos no quotidiano o homem como uma construção orgânica, sujeito à mesma lei de mobilização (penso na Mobilmachung de Ernst Jünger) de qualquer outra coisa: um homem determinado intimamente por uma lei que não é sua; um homem que se vê destinado a ser cada vez mais construído, na sua constituição mais íntima, por uma “engenharia biológica” (ou, o que é literalmente o mesmo, genética), num processo que tem nas técnicas de “manipulação das consciências”, por exemplo, na propaganda política ou na publicidade comercial, apenas um simpático prelúdio. No seu excelente blog, num texto intitulado The Meaning of Life, ainda em resposta a Pacheco Pereira, Paulo Varela Gomes tem sobretudo a virtude de abandonar a retórica humanista e de, neste abandono, fazer uma opção: «Aqueles que como JPP (ou eu próprio) que gostariam de contribuir para que a história se fizesse com "anestesia" como ele diz, ou seja, com menos sofrimento, fazem parte da força não-entrópica da espécie, do seu instinto, do seu impulso. Não serão os outros, os terroristas, os comunistas, os fascistas, os extremistas americanos, os verdadeiros "humanistas"? os que acreditam que a humanidade pode ser alguma coisa MAIS? que a humanidade pode traçar-se um destino não animal ou vegetal?». Apesar das más companhias, penso que talvez seja mais saudável (e quem sabe mais verdadeiro) tentar permanecer do lado contrário. Importa, pelo menos, tentar, na lógica de uma “filosofia do como se…”, que Vaihinger elaborou e que Pacheco Pereira, no seu diálogo com Paulo Varela Gomes, evoca. É certamente mais perigoso, pois perderemos a capacidade de nos dividirmos simplesmente em distinções claras e duais, vendo o mundo claramente dividido entre "bem" e "mal", "branco" e "negro". Mas, recuperando apenas para este propósito um velho conceito nazi, que aliás tem sido cada vez mais ingenuamente recuperado, talvez uma vida demasiado anestesiada não seja digna de ser vivida.


segunda-feira, agosto 25, 2003

Prótese

Muito antes de Nietzsche ter anunciado no homem uma "ponte para o super-homem", já a essência do homem surgia como algo em aberto, em construção. A figura grega do herói como um daimon tem subjacente a ideia de um humano situado numa terra de ninguém, no lugar inexistente de uma linha fronteiriça onde apenas o mundano e o divino se tocam e se separam. A caracterização fransciscana do homem como aquilo que for aos olhos de Deus permite também adivinhar no homem esta permeabilidade à mudança, esta essencial descristalização. Talvez por isso, situados após o anúncio por Nietzsche do super-homem, tenhamos hoje tanta facilidade em integrar em nós elementos estranhos, assumindo-nos como algo que crescentemente é feito. A morte de Deus anunciada por Nietzsche cumpre-se nesta lenta destruição da natureza em nós, nesta abertura do homem como o campo indeterminado do possí­vel. Neste homem, o corpo já não é natureza. Melhor dizendo: ele é, enquanto natureza, enquanto "vida nua" (para usar a expressão de Agamben), apenas a matéria-prima aberta à livre expressão de uma liberdade sem vínculos naturais. Neste corpo são agora gravadas cada vez mais profundamente as marcas da sua artificialidade: desde o adorno do piercing até à prótese cirúrgica. Mas nesta crescente cobertura do corpo humano pelas mais variadas próteses há hoje também uma viragem fundamental. Não se trata hoje de que o homem acolha, no seu corpo, as mais variadas transformações. Trata-se de que ele se transforme a si mesmo numa transformação, moldada pelo funcionamento de um processo em "roda livre" que, no seu decurso, não é mais que uma "liberdade sem sujeito". A transformação do homem em prótese é talvez a questão fundamental que anuncia o nosso futuro.

domingo, agosto 24, 2003

Um nome simples

Se a nossa história é marcada pela essência da técnica, e se esta consiste na redução do complexo ao simples, talvez seja possível caracterizar a nossa situação epocal através de uma crescente incapacidade para lidar com o complexo. E à incapacidade de lidar com o complexo, à necessidade de reduzir o que é diferenciado a uma estrutura simples, poder-se-ia também dar um simples nome: a esta incapacidade chama-se pura e simplesmente estupidez...

A defesa e o terror

«O homem à  defesa é mais malévolo que o homem ao ataque. À defesa, ele sente-se no direito, e isso torna-o mau e dá-lhe a boa consciência de penalizar o inimigo vencido ou mesmo de educá-lo, isto é, de lhe inculcar uma outra alma»

Carl Schmitt, Glossarium (6 de Novembro de 1949)

Se a técnica faz inevitavelmente parte do nosso mundo, este não pode ser reduzido a uma estrutura técnica senão à custa da sua degradação. É, em larga medida, esta degradação que hoje por todo o lado irrompe. O âmbito mais perigoso onde a tendência para a simplificação técnica ocorre é o da política. Como exemplo, penso na retórica beligerante de parte dos nossos liberais contemporâneos: a alusão ingénua, quase pueril, a um eixo do mal, a distinção simples e clara entre o "mundo livre" e o universo obscuro do "mundo do terror". E penso, mais do que nessa retórica, nas suas consequências e nas suas implicações, mais longínquas que imediatas. Das sociedades liberais contemporâneas faz parte a ficção útil e eficaz de um como se, de um als ob: na sua vida quotidiana, estas vivem como se fossem sociedades essencialmente não agressivas. Os cidadãos liberais consideram-se a si mesmos, para usar uma expressão de Rafael del Águilla, "cidadãos impecáveis". Intransigentes nos seus princí­pios, eles não admitem senão uma agressão defensiva, uma guerra de defesa. A principal caracterí­stica dos Estados liberais talvez seja a sua resistência contra a pura e simples declaração de guerra. E nessa resistência está em marcha o processo de redução e de simplificação que marca o movimento da nossa história: todo o ataque é agora reduzido à defesa, toda a guerra, por complexa que seja a sua conjuntura, é agora justificada sob a forma simples de uma prevenção defensiva de danos maiores. Por mais que um Estado liberal seja o agressor, faz parte do liberalismo a incapacidade de atacar e, portanto, a necessidade de atacar apenas sob a desculpa envergonhada da defesa.
Houve, ao longo da história, vários tipos de guerra, cada uma com a sua regulação jurí­dica, cada uma com as armas adequadas à sua natureza conflitual: a guerra é um fenómeno complexo. Esta complexidade é-lhe constitutiva. Mas, para os nossos liberais contemporâneos, todas as guerras movidas por si são redutíveis a uma só forma simples: a guerra defensiva, a guerra dos "homens livres", na sua defesa da humanidade, contra as várias emergências do "mal" e do "terror". Toda a guerra movida por liberais é defensiva. E todo o liberal em guerra é, na verdade, um partisan. Mas acontece que uma guerra defensiva tem, pela sua natureza, a tendência para ser crescentemente aterradora. Quem combate um inimigo, quem ataca um adversário, pode olhá-lo nos olhos e respeitá-lo. Mas quem vê no adversário apenas o criminoso de que é necessário defender-se, quem diante dele, movido pelo ódio que o medo suscita, apela para uma guerra de defesa diante da configuração simples do mal, quem se atira simultaneamente como parte e como juiz contra o seu inimigo, não pode deixar de estimular em si próprio o mais aterrador desejo da sua aniquilação total.

No seguimento do anterior...

Em Über die Linie, Ernst Jünger adivinhava no niilismo um movimento particular: o movimento da redução. Nesta redução consiste a essência da técnica: a redução do complexo ao simples, a eliminação das diferenças no mesmo, a aproximação das hierarquias, dos patamares, dos diferentes níveis e graus a uma mesma linha horizontal onde tudo se funde. E a essência da técnica entra hoje em tudo. O técnico não é um âmbito da realidade, mas a origem da essência que hoje determina todos os seus âmbitos. Quando nada de novo houver debaixo do Sol, quando nada de único puder sequer emergir, teremos chegado ao futuro, ao vindouro, ao que está por-vir, guardado pacientemente pela história que se desenrola sob os nossos pés.

sábado, agosto 23, 2003

Não há nada de novo debaixo do Sol....

O mais inequívoco sinal do progresso consiste na redução do complexo ao simples. A simples reflexão sobre a história do progresso técnico serve para confirmar a clareza meridional desta verdade. O começo está sempre cheio de modelos complexos, de experiências abandonadas, de mecanismos difíceis, de equilíbrios arriscados: numa palavra, de aparelhos estranhos, dificilmente reprodutíveis, cujos protótipos são frequentemente exemplares únicos de museu. Assim, no âmbito da técnica, a abertura do progresso consiste genericamente na descoberta do modo de reduzir a complexidade inicial, reproduzindo em série um modelo que, pela sua simplicidade, e utilizando uma terminologia jüngeriana, deixa de ser um indivíduo e passa à condição de tipo. Apesar dos romantismos artísticos, há muito que a nossa civilização técnica deixou de valorizar aquilo que é único. Ao contrário: a reprodutibilidade do que é simples é hoje simultaneamente a mais inequívoca causa e o mais inequívoco sintoma da valorização. Veja-se, por exemplo, os lamentos sinceros que suscitou em todo o mundo o recente encerramento definitivo da última fábrica dos Volkswagen “carocha”. E imagine-se, em contrapartida, as reacções ao anúncio de uma televisão ou de um automóvel que fosse uma espécie traduzida num único exemplar: um modelo absolutamente individual, original e incompatível com o que quer que fosse. Se os antigos adivinhavam no mundo uma hierarquia rigorosa que jamais se poderia sobrepor ou reduzir, se os nominalistas viam nele um conjunto de indivíduos apenas impropriamente agrupáveis, a nossa civilização existe sob a figura de uma rede em que todos os indivíduos, apesar da sua complexidade e da sua diferença inicial, acabarão por se deixar reduzir à estrutura simples em que um mesmo se tornará, sob várias figuras e aspectos acidentais, indefinidamente reproduzido. Mas a essência da técnica, como dizia Heidegger, não é nada de técnico. A essência da técnica penetra hoje por todos os poros daquilo que somos. A nossa sociedade liberal, a sociedade das infinitas diferenças só e possível por estas serem várias configurações do mesmo. Ela não é, na sua apenas aparente complexidade, senão uma triste confirmação do lamento do Eclesiastes: nada há de novo debaixo do Sol...

quinta-feira, agosto 21, 2003

Morte no Iraque

A morte de Sérgio Vieira de Mello no Iraque é e representa uma desgraça. Como se imagina, não conheci Vieira de Mello. Mas não me posso furtar a participar daquela comoção sentida em Portugal, sobretudo depois das funções por ele ainda recentemente exercidas em Timor. É interessante ler pessoas que certamente, tal como eu, não o conheciam caracteriza-lo invariavelmente como um homem bom. Não duvido de que a homenagem seja sentida. Uma morte é sempre perturbadora. Mas uma morte que albergue um rosto terá sempre o poder singular de nos despertar a atenção para o que radicalmente somos, levando-nos à confrontação inevitável, mesmo que apenas momentânea, com a nossa mais própria, mais intransferível, mais solitária possibilidade de vida: a possibilidade de morrer. Mas a morte de Sérgio Vieira de Mello não apenas é, mas representa. E o que ela representa é, se bem que não no mesmo grau, inquietante. Enquanto representação, esta morte manifesta simultaneamente três sintomas perturbadores. Em primeiro lugar, e para além da falta de informações sobre o que realmente se passa no Iraque, ela representa a continuação persistente (talvez até crescente) de uma guerra de guerrilha, a qual era aliás, tendo em conta a desproporção dos meios bélicos e dos recursos técnicos dos beligerantes, a única actividade previsível contra os exércitos de ocupação. Em segundo lugar, ela manifesta ou a falta de capacidade das potências ocupantes para a evitar este tipo de danos (colaterais?) em civis mandatados pelas Nações Unidas, ou o desinteresse destas mesmas potências em garantir prioritariamente a sua segurança. Em terceiro lugar, ela dá indícios de que a retórica criminalizante sobretudo dos Estados Unidos produz crescentemente o efeito previsível de destruir, entre a população local, a sua capacidade de diferenciar as potências ocupantes da generalidade do mundo ocidental ou mesmo das Nações Unidas. À margem destes indícios, poderemos certamente chorar a morte de Sérgio Vieira de Mello, enquanto uma outra notícia não despertar a nossa curiosidade sempre saltitante, sempre disposta num processo ininterrupto de esquecimento. Mas, diante destes indícios, e diante dos lamentos que por todo o lado ecoam, talvez não seja possível libertarmo-nos da sensação de que estes evocam na sua larga maioria a célebre frase de Estaline: uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística.

O movimento e o motor

Notável o texto motor, do Reflexos de Azul Eléctrico, assim como quase tudo o que se encontra nesse blog, cuja leitura desperta a sensação de que o descobrimos demasiado tarde. Platão, no Político, alude ao mito da idade de Cronos: nesta idade, diferente da nossa era de Zeus, o movimento ocorria no sentido contrário ao que agora ocorre, forçado artificialmente pela tutela de deuses que, depois de um momento de inflexão (de Kehre), se retiraram do convívio com os homens e entregaram o cosmos à liberdade desenfreada do seu movimento imanente. Talvez o mito platónico seja aplicável à nossa “situação metabólica”. Primeiro: uma história marcada, em geral, pela ideia tradicional do motor imóvel aristotélico: a ideia de que o movimento implica sempre o seu esclarecimento através de um percurso perfectivo, estimulado por algo perfeito que, como tal, sendo pura energeia, está em repouso ao mesmo tempo que é a fonte transcendente do movimento e da sua ordem. Depois: uma história entregue ao seu movimento imanente, a um movimento que já não é teleologicamente orientado, dirigido para um fim que o transcende; uma história cujo movimento se dirige apenas para o próprio movimento, num processo em que a aceleração sempre crescente, mas que nunca é absoluta (o que coincidiria com o repouso), se traduz numa mobilização que tende a indistinguir o humano, o animal e o mecânico.

O Alentejo

Regressado não de férias, mas de circunstâncias que impediram uma actualização regular do blog, gostava de justificar-me diante das justíssimas observações da Nova Frente, a propósito da ausência quase generalizada de referências a Aljubarrota. Tive o 14 de Agosto bem presente na memória, até porque curiosamente passei o dia em Fronteira, perto do Campo dos Atoleiros, onde Nun’Álvares, com os seus alentejões, tinha anteriormente derrotado as tropas invasoras de Castela. Havia um poeta alemão (não me ocorre agora o nome) que descrevia Portugal como die Landschaft meiner Seele [a paisagem da minha alma]… Sendo português, não posso, como esse alemão, compreender Portugal num todo indistinto. É necessário eleger. E diria que, elegendo, e não só por ligações familiares, surge o Alentejo: é o Alentejo que é a paisagem da minha alma

Esclarecimento

Devido a alguns mails que recebi, torna-se necessário esclarecer que os post assinados por “Giraldo” não foram escritos por mim. Trata-se de um amigo que prefere, aliás contra minha vontade, manter-se sob pseudónimo.

segunda-feira, agosto 11, 2003

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso

Escrevo enquanto oiço o som das sirenes nesta capital desolada pelo calor.
Mais um ano em que nos resta esperar os paliativos cosméticos que os peritos
do costume nos propõem para contornar os problemas perenes que desde sempre nos afligem.
E, contudo, olhando mais além na direcção do Oceano Pacífico, eis que nos
surge o Mensageiro da Verdade nas suas vestes humanas, demasiado humanas. O herói da nossa juventude cresceu e tornou-se o mito másculo contemporâneo:
oriundo da Velha Europa execrada pelos falcões do Pentágono, emigrante
triunfador na América do negócio e do ócio, transmutado em protagonista dos
nossos sonhos de celulóide, campeão dos campeões, duro dos duros, bom dos
bons, ariano entre Untermenschen, gigante entre anões, heterossexual entre pedófilos, milionário entre remediados, epítome ambiciosa das aprazíveis virtudes incensadas na era da globalização, ele é Arnold Schwarzenegger (em luso, Arnaldo Pretonegro)...
Arnaldo (ou, talvez, Arnoldo numa tradução mais literal) quer ser Governador
Republicano da Califórnia que os Democratas (leia-se, os Socialistas lá do
bairro) quase faliram. Ele quer - segundo as melhores fontes disponíveis -
que a Califórnia volte a ser uma "land of plenty", uma terra bem administrada, ordeira, segura, de onde as pessoas e as empresas não saiam nem queiram sair (mas onde é que eu já ouvi isto?).
Arnaldo quer ser Governador Republicano da Califórnia para demonstrar que
não é só máquina, não é só músculo, não é só carne, mas também é espírito,
também é comunhão fraterna, também é aspirante a inquilino da Casa Branca.
Impõe-se, por isso, uma pergunta e uma pergunta apenas: será Arnaldo um
clone transviado do nosso mais comezinho "Cherne"?

Giraldo, o wahabita lusitano

quarta-feira, agosto 06, 2003

Os incêndios

Acho um pouco triste toda esta discussão acerca dos incêndios, com a televisão histérica, a polícia a anunciar a maior operação de “caça” a incendiários e o país político, ainda atordoado pelos acontecimentos que o impedem de ir a banhos na época normal, a procurar "ajudar" como pode, fazendo o que sabe: debatendo, com carácter de urgência e sem preparação, os fogos, a falta de meios e de planeamento, a natureza da floresta portuguesa, o seu abandono, o seu povoamento quase exclusivo com espécies de crescimento rápido, a desertificação do interior do território. Surge-me a imagem forjada de Nero, cantando e declamando diante das chamas de Roma. Será que ainda não perceberam que os incêndios são um tema de Inverno?

terça-feira, agosto 05, 2003

A derrota

Não encontro texto mais inquietante que Os Persas, de Ésquilo. Não é apenas todo o mundo grego que nesse texto se concentra. No coro dos anciãos e das mulheres persas, que tremem diante do tempo que se alonga, esperando por novas da frente de batalha, está mais do que a Grécia: está a coincidência imediata entre a fragilidade e grandeza de gregos e de bárbaros. Por um lado, era irresistível o exército nascido da Ásia imensa, que ficara despovoada de homens e que passava agora sobre o estreito que a separava da Europa, como a onda de um mar que nenhum poder humano conseguiria conter. Mas, por outro lado, desponta titubeante a inquietação inevitável. E se um deus o quisesse perder? E se um daimon maligno e enganador despertasse nesses homens um excesso de ambição, uma hýbris, seduzindo-os para uma falta que não poderia ficar sem expiação? Não seria o mar já o sinal da sedução? Mas além da fragilidade e da grandeza, cuja coincidência caracteriza o início grego daquilo que somos, Ésquilo, um grego, escreve a sua tragédia na perspectiva dos persas derrotados. Porque razão? Será que se trata da antecipação imprevisível da tolerância moderna, tentando adoptar bondosamente, num “relativismo” saudável, o ponto de vista do adversário? Penso que não. Com isso, ele dá-nos um outro ensinamento, que talvez passe mais obscuramente na análise imediata. É que só a derrota permite uma lucidez e uma inteligência que o vencedor, na celebração festiva da vitória, não consegue jamais alcançar.

segunda-feira, agosto 04, 2003

Cacocratas e tumores...

Mais um mail do Giraldo...

Mário Soares, lusíada eurodeputado e reputado «pai-fundador» da Democracia
Lusa, entendeu mimosear publicamente o Dr. Paulo Portas com o apodo de
«tumor maligno que deve ser extirpado»...
Logo se levantou o esperado coro partidário de protesto: O Dr. António Pires
de Lima (filho de ex-Bastonário da Ordem dos Advogados), deputado pelo
C.D.S./P.P. à Assembleia da República e gestor da Compal-Companhia
Portuguesa de Produtos Alimentares, S.A. (empresa que pertence ao Grupo
Mello, o mesmo que gere impecavelmente o Hospital Amadora-Sintra), veio
verberar «o nível grosseiro (...) e o espírito de vendetta» do octogenário
socialista; por seu turno, o Dr. Luís Filipe Menezes, camareiro de Gaia em
tirocínio para voos mais altos no seio do seu P.S.D. natal, sibilinou, com a
manifesta subtileza que possui e que todos os portugueses unanimemente lhe
reconhecem, que os dichotes do Vau mais não eram que uma tentativa de abalar
a coligação do Governo ao «vir pela porta de trás (...) para atacar o líder
do partido mais pequeno».
Depois destas pérolas com que os cacocratas (o contrário de aristocratas;
cacocracia é, à letra, o governo dos piores) deste País nos brindam,
resta-nos ir de férias armados de mangueiras e extintores e, seguindo o
conselho piegas do nosso P.R., estar sempre prontos a «evacuar» os nossos
domicílios às ordens dos mui dignos representantes do novo monstro
burocrático - o Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil (SNBPC) -
inventado por este Governo em nome da contenção orçamental das despesas
públicas.

domingo, agosto 03, 2003

A modernidade do cristianismo

«O homem está separado de Deus e unido. Todo o traço de separação é de união e vice-versa - a ponte e o abismo. O homem e Deus! a razão e o absurdo! Mas se Deus não fosse um absurdo, quem lhe ligaria importância ou acreditaria nele? Quem se atreveria a adorá-lo ou a negá-lo? Só amamos o absurdo e o impossível! E há nisto um grande sinal

Teixera de Pascoaes, O homem universal, Lisboa, Assírio e Alvim, 1993, p. 65.


Interrogo-me, por vezes, se no cristianismo o tempo não correrá ao contrário. O tempo cristão parece-me desenrolar-se como o tempo de Cronos naquele mito platónico, em que os homens nasciam velhos do seio da terra, morrendo depois por serem demasiado novos, como uma semente, no ventre materno.
O cristianismo originário, o das primeiras comunidades cristãs, é o primeiro fenómeno essencialmente moderno. Os primeiros cristãos viveram, como se sabe, na expectativa do fim dos tempos iminente. A destruição do mundo deveria surgir a qualquer instante, irrompendo como um "ladrão na noite". O próprio tempo, na sua lei inexorável (a lei da morte), tinha já sido derrotado pelo "escândalo" paulino do anúncio de um homem-Deus ressuscitado. Os homens rebelavam-se finalmente contra o mundo, numa stasis que lhes manifestava a pertença a um destino e a uma vocação maior. A separação eminentemente moderna entre "liberdade" e "natureza", entre um mundo regido por uma férrea legalidade natural e um homem que nele se encontra como um sujeito livre, intimamente indeterminado por essa mesma lei, ganha nestes primeiros tempos cristãos a sua configuração originária.
E surgem, a partir daqui, as várias seitas, as várias gnoses, as sementes de uma rebelião cada vez mais radical. Da parte de muitos, surge a rebelião (terrorista?) contra a ordem já superada deste mundo. Em Márcion, por exemplo, aparece a tentativa de matar o mundo através de um ascetismo que contrarie a naturalidade da sua lei. E, depois, não falta também a inevitável tentativa contrária, a procura de ver no cristianismo uma mera forma de continuação do poder imperial romano, vendo no carácter singular do poder de Deus a forma paradigmática que justificaria a continuação do poder de César. Mas, com o passar do tempo, eis que vai surgindo, no meio da rebelião, a grande perplexidade: a Revelação não trouxe consigo o fim. Apesar de ela ter desfeito as cortinas que cobriam a fragilidade do tempo, consumando-o, o homem não termina, mas inicia uma nova vida num tempo já consumado. Apocalipse e escatologia não coincidem. Um estranho travão, um katechon, impede a consumação definitiva, impondo o distender-se de um tempo que, depois da morte da sua própria lei, não deveria ter lugar.
Com este prolongamento paradoxal do tempo, a modernidade do cristianismo originário, no seu dualismo irredutível, no seu levantamento rebelde contra o mundo, conhece também a sua inversão essencial. O mundo e a rebelião contra o mundo, o tempo e a radical subversão da sua lei de morte, opostos irreconciliáveis, devem encontrar-se, numa coincidência contraditória, impossível de harmonizar. E uma tal coincidência é a Igreja: ela é então uma coincidência impossível, sempre determinada por um combate intrínseco, sempre "polémica"; o absurdo anúncio temporal da morte do próprio tempo; o sinal enigmático, no mundo, do fim deste mesmo mundo. Ela é assim a ultrapassagem da originária "modernidade cristã". Reduzi-la a menos que isso talvez seja já transformá-la numa cópia, que tantas vezes se torna grotesca, daquilo de que ela é a superação.

sexta-feira, agosto 01, 2003

Uma resposta (demasiado breve) ao Bruno Alves

No blog Desesperada Esperança, Bruno Alves contesta as afirmações que fiz, em textos anteriores, a propósito da natureza do conservadorismo. Antes de mais, para além de lhe agradecer publicamente a atenção com que me leu, gostava de reconhecer que, na perspectiva que adopta, o Bruno tem inteira razão. É, de facto, possí­vel falar do conservadorismo como um género de que vários movimentos políticos, identificados vagamente com uma "direita, se constituiriam como diferenças especí­ficas. O Bruno cita um livro onde se referem três tipos de conservadorismo distintos. Mas, nessa perspectiva, poder-se-iam ainda identificar mais, que aí­, e não por acaso, são ignorados: o "conservadorismo" da revolução-conservadora, na República de Weimar; o "conservadorismo" dos sectores católicos no movimento fascista; o "conservadorismo" do puritanismo americano; o "conservadorismo" manifesto de alguns membros da Action Française ou do Estado Novo, por exemplo, o qual coexistia alegremente com o modernismo e outras correntes. Bem sei que o Bruno me dirá que, nos meus exemplos, não evoco um genuíno conservadorismo (na medida em que não é politicamente céptico, pessimista em relação à  natureza humana, hostil em relação às revoluções, atento às realidades concretas e à  necessidade de encontrar nelas um equilí­brio sempre difícil). Contudo, se adoptarmos a perspectiva de que o conservadorismo é um género político, não vejo como não se tenha de subsumir no seu seio todas estas espécies. Contudo, se o fizermos, o conservadorismo deixa de ser uma determinação conceptual para passar a ser um mero nome, agregando fenómenos que são, na sua essência, inteiramente distintos. Querer catalogar como genericamente conservadores fenómenos tão diferentes será tão absurdo como dizer que Augusto, Bismarck ou Salazar representam formas especí­ficas de uma visão imperialista do mundo.
O que propus com os textos que escrevi anteriormente, fugindo dessa perspectiva catalogadora, foi tentar aproximar-me da essência do conservadorismo, sugerindo que este não é propriamente uma posição polí­tica; melhor dizendo: que este não é capaz de forma polí­tica. Tomo um exemplo, para explicar mais convenientemente o que quero dizer: a questão do "pessimismo antropológico" do conservadorismo; a sua desconfiança em relação à  "bondade natural do homem", sugerida pelas utopias, pela democracia radical de Rousseau, pela dialéctica de Marx, pelo anarquismo de Bakunine, pelo "princípio esperança" de Bloch, etc., etc.. Apesar do que se afirma comummente, o conservadorismo não toma nenhuma posição polí­tica em relação a esta questão; ele pura e simplesmente - e esse é o ponto importante - não decide. Ao mesmo tempo que descofia do optimismo antropológico das "utopias", ele parte deste mesmo optimismo, vendo o homem como um ente essencialmente perfectível (cf. Rousseau), capaz de se conservar ao sentir o apelo da razoabilidade. Ao mesmo tempo que condena os "projectos políticos racionalistas", ele confia na "racionalidade" de uma "razão parlamentar", forjando a ideia (porventura, esta sim, utópica) de que o parlamento é uma sede onde se pode persuadir ou ser persuadido. Ao mesmo tempo que condena como "utópica" uma razão que se coloca contra a história (tendo assim uma visão limitada da própria razão moderna), ele herda a ideia moderna de uma razão livre na sua intimidade, cuja interioridade inviolável surge contraposta a uma natureza exterior regida pela necessidade de uma "legalidade natural". Entre as ideias do pessimismo ou optimismo, o conservadorismo é essencialmente uma não-decisão. Ele apenas procura um equilíbrio, mas um equilíbrio a que o move não uma ideia fundadora ou fundamental (que não existe), mas a sensação que o caracteriza: a sensação de que é desagradável mudar.

Angústias ao jantar

Recebi o presente mail de um amigo, que prefere atribuir-se a si mesmo este nickname subversivo: Giraldo, o wahabita lusitano. Vale a pena:

Diversos generais reformados do ilustre Exército Português juntaram-se para
dizer mal do Dr. Paulo Portas, o ainda Ministro de Estado e da Defesa
Nacional.
A novidade do caso não reside na ocasião nem na contestação - ambas de
índole corporativa -, mas no modo escolhido para obter o efeito mediático
desejado.
Em primeiro lugar, é sabido que o «jantar» foi, nos primórdios da
nacionalidade e devido à carência do sonante e vil metal, a forma a que os
reis itinerantes da originária Dinastia de Borgonha lançaram mão para cobrar
(e consumir) impostos em espécie das populações dispersas pelo território
nacional...
E é também sabido da nossa História -sobretudo a dos dois últimos séculos -
que a contestação pública dos generais ao regime político (e aos políticos)
do momento cheirava quase sempre à iminente golpada ou quartelada da praxe.
Contudo, a manifesta falta de armamento e de equipamento (a contrastar com o
lustre das fardas e das condecorações), bem como a crónica carência de
dinheiro para sustentar a ficção onerosa de uma «Defesa Nacional», impedem
quaisquer veleidades golpistas, limitando os seus aspirantes à refeição
colectiva como manifestação possível e socialmente admissível do respectivo
desagrado: ou seja, o jantar dos generais mais não é que uma espécie
contemporânea (e variação elegante) do género «levantamento de rancho»,
desde sempre tão praticado por sargentos e praças...
Em segundo lugar, o poder militar (que não existe, ou só existe para efeitos
meramente estatutários) está «subordinado» ao poder político; este eufemismo
retórico vertido na Constituição da República Portuguesa significa que os
militares não têm nenhum poder para além dos símbolos que ostentam e das
memórias que cultivam, as quais resultam da tradição e da História recentes.
É lícito afirmar que só há poder - e por extensão, poder militar - na medida
em que se conjugue a vontade de supremacia com os meios adequados à sua
realização, o que patentemente não se verifica neste País.
Em terceiro lugar, os contestantes (que pretendem representar uma classe,
uma ordem, um estamento) inclinam-se à partida diante das instituições e dos
protagonistas - reconhecidos refractários ao serviço militar obrigatório -
que consubstanciam o actual regime; mais não lhes resta senão aceitar as
migalhas que caiem da mesa dos benefícios e privilégios correntes, pois há
já muito que se privaram voluntariamente das alavancas de poder.
Em quarto lugar, bem sabem os generais que não podem radicalizar o seu
protesto, alargando o seu âmbito à natureza e ao funcionamento do actual
sistema de organização social; uma tal crítica alargada constituiria a mais
poderosa refutação da magna obra das suas vidas: a instituição da democracia
rotativista pós-25 de Abril.
Por isso, circunscrevem os seus agravos a um único causador, epítome
demagógica dos males da nossa época anti-heróica: o multifacético e
multifacécico Paulo Portas, solteirão «upper-crust» filho de distintas
famílias de Lisboa e arredores.
É preferível descarregar a nossa má-consciência num bode expiatório, em vez
de atacar as verdadeiras causas da decadência nacional.

Giraldo, o wahabita lusitano